Capítulo I

O Sábio

 

 Quando acordei naquela manhã tranquila, as expectativas de um dia normal eram os únicos pensamentos que se passavam pela minha cabeça. Pela manhã, eu teria aula e à tarde atenderia na biblioteca como parte do meu trabalho na Academia. Não esperava nada mais que isso naquele dia — jamais imaginaria como tudo mudaria na minha vida apenas por causa de uma pessoa. Cinco anos estudando magia na Academia de Mirylhan foram tão insignificantes perto do último, que tive a sensação de ser “hóspede” naquele lugar.

 É engraçado olhar para trás e ver como nunca pertenci a ela. A primeira vez que entrei no campus da Academia, lembro-me do esplendor estonteante dos edifícios, grandes prédios com vitrais que brilhavam de mistério e charme e que me provocavam a imaginação. Desejava saber que tipo de magia incrível era praticada e ensinada dentro daquelas salas. O campus em si era um lugar destoado do resto do mundo: o rio que o cortava ao meio corria em ritmo vagaroso, criando uma divisão tão estranha e ao mesmo tempo, tão natural ao lugar. As passarelas que cruzavam o rio de um lado ao outro davam a impressão de terem nascido da própria terra, com as vinhas que amarravam os parapeitos de pedra cinza e polida. 

 As árvores e as praças com seus canteiros de flores e as estátuas ornamentadas dos deuses, construídas para harmonizar o campus de uma forma que respeitasse as linhas de cores de mana, deixando elas fluírem livres e naturais… Tudo isso dava uma sensação de conexão tão forte e prazerosa em tudo! Era algo que eu nunca havia sentido em toda minha vida e, talvez, por isso, naquela época, era tão forte meu desejo de nunca sair de lá. Foi naquela tarde, na biblioteca, enquanto eu trabalhava com alguns registros na recepção, que ele apareceu. Um sujeito comum, de cabelos escuros, olhos castanhos claros, de rosto achatado e nariz largo; não era alto, mas tinha uma estatura considerável, de alguns centímetros mais alto que eu. Devia ser dois ou três anos mais novo, parecendo ter 16 ou 17 anos. 

 Ele se aproximou da minha mesa, enquanto eu estava com o olhar cravado nos registros e fazendo algumas transcrições de uma folha, para o livro de arquivo da biblioteca. O cheiro da tinta e as sentenças que eu copiava eram todo o meu mundo e quando ele se aproximou, interrompendo a luz do sol que vinha da entrada, sombreando o livro, levantei o rosto com um olhar irritado na direção da figura que olhava de forma dúbia para mim.

 No instante em que o meu olhar encontrou o dele, ele percebeu a irritação no meu rosto, pois foi nítido como seus olhos se arregalaram por um breve momento e ele moveu os lábios balbuciando, como se o que tinha ensaiado para dizer tivesse fugido da mente e ele precisasse buscar novas palavras.

 Não demorou muito para ele se recuperar do choque. 

— Gostaria de usar a biblioteca. Como eu faço? 

 As palavras saíram amarradas, o sotaque era carregado e, obviamente, Parnamim não era sua língua nativa, pois ele falava com notória pausa entre as palavras, buscando o significado do que queria dizer. 

— Você é aluno da Academia?

 Não precisava fazer essa pergunta, pois já sabia que não era. Estávamos na metade do semestre letivo e nenhum aluno novo entrava no meio do semestre. Ele poderia ser um desses que nunca aparecem na biblioteca antes dos exames finais, quando já está tão tarde para buscar o conhecimento necessário para os testes, que era inútil tentar.

 Duvidava que o sujeito fosse um desses alunos perdidos, pois nestes, existe um olhar de desespero e pressa, que não correspondiam ao olhar consternado que ele fazia enquanto buscava entender o que minha pergunta queria dizer.

 Ele balançou a cabeça negativamente e após alguns segundos, enquanto eu o encarava, achou sua voz novamente e respondeu um “não” sonoro. 

— Pois bem, apenas alunos da Academia podem usar as dependências da biblioteca.

 Normalmente isso é tudo o que eu precisava dizer para que os caipiras que vinham até a Academia, para tentarem se tornar magos, deixassem a biblioteca. Na maior parte das vezes, alguns deles mal sabiam ler e nenhuma utilidade tinham os livros armazenados ali. 

 Voltei a cabeça para os meus registros, esperando que após alguns segundos, a penumbra que atrapalhava meus textos, se desfizesse. Contudo ela permaneceu, forçando-me a levantar novamente a cabeça e encarar o sujeito insistente que estava plantado à minha frente.

 Eu estava prestes a dar uma resposta grossa e mandá-lo sair. Mas, desta vez, quando levantei a cabeça, o sujeito não estava me encarando. Ele tinha virado de lado e olhava para dentro do corredor que levava até o salão principal da biblioteca, com uma mão no queixo, pensativo.

 Quando abri a boca para falar, ele se virou na minha direção e disse, de forma compulsória:

— Me desculpe por atrapalhar o seu trabalho, mas cheguei até aqui com a intenção de entrar na Academia para aprender sobre magia. O sujeito a quem perguntei como poderia ingressar na Academia riu de mim e disse que as próximas provas só aconteceriam daqui a três meses e disse que era para eu voltar depois, na época certa dos exames, que eu não tinha nada para fazer aqui senão “vagabundear” — ele falava martelando as palavras sem parar.

— Então resolvi vir até a biblioteca, pois acreditava que teria chance de aprender qualquer coisa que fosse aqui, até mesmo me preparar para as provas. — A indignação dele era visível em seu olhar e ele completou: 

— Agora fica difícil de entender... Todas as informações sobre a Academia dizem que todos eram bem-vindos, se tivessem algum talento. Mas como vou saber se tenho algum talento para me tornar um mago se nem mesmo o básico posso aprender? 

 Ele parou de falar por um momento para recuperar o ar dos pulmões; as palavras tinham saído chutadas e o seu sotaque, de alguém que não conhecia bem o idioma, era ainda mais evidente. 

 O seu olhar penetrante tinha me congelado e só quando ele parou de falar lembrei de fechar a boca aberta. Só então reavaliei o sujeito. O sotaque e o modo de falar estranho não condiziam com nenhuma região próxima dos reinos centrais — ao menos nenhuma que eu conhecia. 

 A roupa dele, um casaco marrom claro, simples, de tecido batido e as calças bem cortadas, de tecido grosso, foram feitas com o corte certo para ele. As botas estavam novas e não havia sinal de uso prolongado, embora estivessem um pouco sujas. Dava para notar que esse rapaz tinha algum recurso diferente dos caipiras, que normalmente apareciam aqui sem um tostão nos bolsos. 

 Quando ele voltou a falar, depois de respirar profundamente, tentou soar mais suave, quando percebeu que eu o analisava, de cara fechada.

— Me perdoe — disse —, não quis ser rude, mas existe alguma solução para o meu problema? Como eu faço para ter acesso à biblioteca sem ser um aluno?

 Apesar da minha irritação inicial, uma centelha de curiosidade despertou em mim, fazendo-me olhar aquele sujeito com novos olhos. 

— Qual é o seu nome? — A pergunta pareceu tê-lo surpreendido, pois ele demorou alguns segundos para responder, enquanto seus olhos penetrantes me varriam.

— Pode… — Ele fez uma breve pausa e continuou. — Pode me chamar de Annanis.

 A forma como ele me respondeu me fez erguer uma sobrancelha — definitivamente, era o sujeito mais estranho que eu já havia conhecido. 

— Annanis, sabe ler? — Desviei os olhos para pegar um dos formulários de solicitação de uso dos documentos da biblioteca na gaveta da escrivaninha na qual eu trabalhava. Era um formulário específico para não alunos, mas não adiantava nada entregar uma folha para ele da qual ele não conseguisse extrair nenhum significado. 

 Os olhos dele se estreitaram e ele pareceu ignorar a pergunta, enquanto observava a folha que eu tinha na mão. 

— Este é um formulário para solicitação de acesso à biblioteca para não alunos. — Disse. Alguns momentos depois, ele esticou a mão para pegar a folha. 

— Está escrita em Parnamim, sabe ler esse idioma? — Ele tirou os olhos da folha, encarando-me, suavizou a expressão no rosto e disse de forma estranha: 

— Deixe-me dar uma olhada no texto.

 Entreguei a folha e ele ficou alguns segundos a observando, enquanto seus olhos corriam as palavras; estava prestes a perguntar que idiomas ele conhecia, pois a biblioteca tinha formulários em outros idiomas para auxiliar na integração de alunos estrangeiros, quando ele tirou os olhos da folha, encarando-me com um sorriso no rosto.

— Está bem, não terei problemas para ler. Basta escrever o que desejo utilizar da biblioteca e o motivo. Correto?

 Ajeitei-me na cadeira, antes de responder, um pouco desconfortável com o sorriso afetado que ele dirigia a mim. 

— Bem, basicamente é isso sim. Pode usar aquela mesa, tem tinta e pena disponíveis. Tente não sujar a mesa.

 A biblioteca era um prédio gigantesco de três andares e com um subsolo, todos repletos de livros. Os vitrais da biblioteca eram todos representados com figuras de homens e mulheres lendo. Livros e desenhos de cálices sobre ou ao lado dos livros representavam beber o conhecimento que estava contido ali, uma fonte de conhecimento. Os livros nos vitrais eram desenhados de forma que a luz do sol, quando passava pelos livros, dava um brilho místico e imponente. Toda a iluminação do interior da biblioteca era feita por gemas amarelas que emitiam uma luz forte semelhante à luz do sol. A biblioteca era muito bem iluminada, exceto na recepção, na qual boa parte da sua iluminação vinha do sol que perpassava os vitrais. 

 A entrada era uma grande porta que dava para uma entre-sala, um tapete cobreado se estendia da entrada da biblioteca até o corredor que levava para o salão interno. Na entre-sala próxima à porta para o salão interno ficavam as duas mesas dos recepcionistas, uma delas na qual eu trabalhava. Os trabalhadores da biblioteca eram sempre alunos em formação. 

 Na lateral da entre-sala ficavam mesas para que os alunos as utilizassem. Ao indicar a mesa para que o tal de Annanis pudesse usar, fingi voltar ao meu trabalho, enquanto observava o sujeito ir a passos comedidos em direção a uma das mesas, enquanto lia, de forma curiosa, a folha. Duvidava que ele entendesse exatamente o que estava escrito nela, mas estava ainda mais curioso para ver o que ele escreveria.

 Na minha distração com Annanis nem percebi que Orello me observava da outra mesa. Ele trabalhava na biblioteca junto comigo, embora não fôssemos propriamente amigos, conversávamos vez ou outra sobre coisas triviais. Percebendo o incomum garoto que tinha vindo falar comigo, ele também se interessou pela peculiaridade de Annanis. Deu-me uma piscadela e um sorriso de canto de boca. Ignorei-o e continuei fingindo que fazia meu trabalho, enquanto observava Annanis sentado na mesa.

 Desta vez ele não encarava a folha com curiosidade e a riscava de forma agressiva e voraz. Balançava a pena, freneticamente, enquanto escrevia, mergulhando-a na tinta e voltando a escrever incessantemente. Após alguns minutos, ele se levantou e voltou caminhando até a minha mesa. Esperei que ele chegasse perto para eu levantar o rosto. 

— É para você mesmo que eu entrego a requisição? — Com um rosto cheio de expectativas, ele estendia o documento na minha direção. Peguei a folha e examinei-a por alguns segundos antes de responder. 

— Sim, deixarei com o coordenador da biblioteca e amanhã você pode retornar aqui para saber a resposta — expliquei.

 Com os olhos fixos, examinei a folha. A caligrafia era de alguém que estava acostumado a escrever, embora as letras estivessem um pouco tortas e diferentes do que se espera de alguém fluente na língua. A gramática estava perfeita e a requisição bastante formal.

 Quando levantei a cabeça, o olhar de expectativas tinha deixado o rosto dele, substituído por um de frustração. Imagino que ele tenha acreditado que teria acesso imediato à biblioteca, após preencher o documento. “Não, não é tão simples assim!”, pensei. Alguns conhecimentos armazenados dentro da biblioteca são perigosos e a entrada a ela é bem restrita.

 Annanis não fez qualquer questionamento quanto ao prazo e após um aceno de cabeça consternado, ele agradeceu e saiu por onde entrou. Segui-o com os olhos até a saída da biblioteca e quando pretendia voltar às minhas atividades, o olhar de Orello pescou minha atenção. 

— Sujeitinho estranho! Esses caipiras que vêm de longe achando que é só passar pela porta e se tornar um mago… — Orello deixou as palavras morrerem com um muxoxo, expondo, claramente, qual a sua opinião.

 A maior parte dos magos da Academia era nobre ou composta por filhos de mercadores bem-sucedidos. Apesar de a escola aceitar qualquer um que tivesse talento, o custo dentro do campus era por conta do aluno. A Academia até ajudava com bolsas e trabalhos remunerados dentro do próprio campus, mas apenas se o aluno tivesse um talento muito promissor, raramente um estudante sem condições financeiras era aceito. 

 Os nobres e alunos mais ricos destratavam os mais pobres e existia uma divisão clara, porém não dita, do lugar onde cada um pertencia. Os nobres só se misturavam com outros nobres. Os mais ricos tendiam a ficar entre os seus e os mais pobres, minoria, perambulavam no campus como párias.

 Eu vinha de uma casa de mercadores bem-sucedida nos negócios, porém não muito rica. Era o segundo filho da família e embora não fosse excluído da sociedade, como os caipiras de botas finas que vinham do interior, eu sofri minha cota de chacotas por parte dos veteranos, tanto dos filhos de mercadores mais ricos quanto dos nobres. 

 Nunca gostei dessas brincadeiras e nem sentia a necessidade de me vingar cometendo as mesmas atrocidades que sofri nos aprendizes mais novos na Academia. Voltei ao meu trabalho e deixei o comentário de Orello sem resposta.

 Mais tarde, naquele dia, já tinha esquecido de Annanis. Estava caminhando de volta ao meu dormitório, carregando um livro que pretendia ler para me distrair naquele fim de tarde: A Batalha das Planícies de Bassalis, um relato sobre a batalha épica de quando quatro das sete raças derivadas lutaram contra os Avianos para tomar a fortaleza de Aggazissol. Gostava sempre de ler sobre contos de guerras e batalhas históricas. A leitura ajudava-me a espantar a solidão do fim do dia e podia ler até que o sono me alcançasse. 

 No sentido oposto aos dormitórios vinha caminhando Annanis, com uma alforja e uma bolsa grande penduradas nas costas. Os olhos voltados para o chão, enquanto caminhava pensativo. Passou por mim sem notar minha presença, e minha curiosidade sobre as suas origens voltou a pulsar na minha mente. 

 Sem hesitar, virei-me e gritei o nome dele: 

— Annanis! — Mas ele não fez qualquer menção de que tinha notado meu chamado, nem sequer diminuiu o seu passo ritmado. Foi só na segunda vez que gritei seu nome, de forma interrogativa, que ele parou, estancando o passo fundo no chão e olhou para todas as direções, antes de olhar para trás e me encontrar.

 A confusão nos seus olhos rapidamente se desfez quando ele me identificou. Ficou parado alguns segundos tentando entender do que se trava, até que comecei a me aproximar. 

— Para onde está indo? — A pergunta tirou-o da estagnação momentânea em que estava e ele até se lembrou de respirar.

— Estou procurando um lugar para passar a noite. — Ele me respondeu com um olhar torto, certamente duvidando das intenções da minha pergunta. 

— Mas os dormitórios estão naquela direção. — Apontei para o lado em que eu me dirigia. Ele me olhou de cima para baixo como se procurasse alguma coisa e então sorriu. 

— Sim, já estive lá. Mas meus recursos são escassos e não sei por quanto tempo ficarei aqui. — O sorriso determinado no rosto dele me fez sentir certa empatia. 

 Provavelmente já haviam pregado diversas peças nele durante todo o dia no campus. O campus era gigantesco e a caminhada de um lado ao outro levava um tempo considerável. 

 Os alunos veteranos indicavam a direção errada de propósito quando notavam que um novato não sabia para onde ir. Era uma pegadinha comum, já tinham feito isso comigo nos meus primeiros dias no campus, algo que todo aluno novato passava. 

— Entendo. — Falei alto enquanto pensava e ele entendeu isso como uma dispensa e começou a se virar para partir. 

— Não. Espere! — Eu o cortei antes que ele pudesse retomar os passos. — Provavelmente quem te indicou esses dormitórios fez isso para tirar uma com a sua cara. Esses dormitórios são mais luxuosos, feitos para os nobres e os filhos de comerciantes mais abastados. Existem outros dormitórios mais simples do outro lado do campus, lá você vai encontrar acomodações a um preço mais acessível.

 Ele me olhou desconfiado; o sorriso que antes era determinado agora estava um pouco retorcido, provavelmente a quantidade de pegadinhas que os alunos deviam ter feito com ele o deixou desconfiado de todos. 

— Falo sério, não quero pregar uma peça em você! — Ele ainda me olhava estranho como se esperasse exatamente essas palavras. Por fim, completei:

— Vamos! Para provar que não estou tirando uma com você, te levarei até lá. — Os olhos dele cintilavam incrédulos por um momento e ele concordou com a cabeça, até encontrar as palavras e agradecer com um obrigado engasgado. Começamos a caminhar lado a lado, descendo a estrada que levava ao lado oeste do campus. O campus era dividido em duas partes, cortado pelo rio. Ao lado leste, ficavam a biblioteca, a arena e os dormitórios mais luxuosos. Do lado oeste, ficavam a estrada principal, que dava acesso ao campus, o prédio administrativo, o prédio com as salas de aula e o dormitório mais simples.

 No dormitório simples ficavam os alunos bolsistas. Onde os menos abastados dormiam. Apesar de serem simples, eram quartos notoriamente funcionais com mobílias em bom estado e recintos bem aquecidos. 

 Embora não fosse desagradável ficar em um deles, o status de “botas finas” era “concedido” a todos que dormiam ali. Depois que aprendi isso, rapidamente dei um jeito de trocar de dormitório. Embora meu quarto no dormitório de luxo não seja nada luxuoso, sendo apenas um cubículo que dividia com outro estudante, era o suficiente para que eu passasse despercebido das chacotas direcionadas aos alunos de origens mais humildes. A caminhada era constrangedora e Annanis não parava de me avaliar pelo canto do olho e eu não era muito bom com esse tipo de interação. Não tinha muitos amigos no campus. Quase nenhum. Parando para pensar, eu não tinha amigo algum naquela época. Todas as relações que tinha com os outros alunos eram apenas entre colegas. Nunca saía com nenhum deles, para nenhum tipo de evento social. 

 Quando conversava com outros alunos era somente sobre temas relacionados às aulas ou sobre amenidades do tipo: como o tempo está muito frio ou muito quente, “como tem chovido bastante estes dias” e coisas do tipo. 

 Minha falta de tato para iniciar uma conversa me fez ir direto ao ponto: 

— Você tem um sotaque incomum, não reconheço a origem. Você vem de alguma região mais a leste de Mirridinna? — A pergunta deixou-o desconfortável. Annanis desviou o olhar, analisando o horizonte. 

 Alunos andavam em grupos de dois ou três, subindo ou descendo a estrada. Alguns passavam por nós indo em direção aos dormitórios e outros, descendo na mesma direção. Após as aulas, as atividades no campus eram livres, muitos usavam esse tempo para estudar; outros para descer até a cidade de Doxxima com o intuito de divertirem-se e beberem nas tabernas.

 Depois de um silêncio constrangedor, ele respondeu. 

— Algo assim! — E continuou, em seguida, arranhando as palavras com sua fluência na língua. — Este lugar é incrivelmente grande e passa uma sensação estranha quando passo por certos pontos, como se algo puxasse minha atenção e reverberasse dentro de mim; consigo ver, às vezes, um fluxo leve e colorido no ar, como uma linha fina. 

 Sem deixar uma pausa para eu questionar a resposta vaga a respeito de sua origem, e deixando-me ainda mais curioso, resolvi não pressionar muito mais, dando sequência ao assunto trivial. 

— Sim, o campus da Academia é fascinante, todas as estruturas foram construídas respeitando os nós e o fluxo das linhas de mana. Algumas até mesmo intensificam o fluxo, dando essa sensação de reverberação como você mesmo disse. Mas é esperado que um mago consiga ver as linhas de mana bem facilmente e que possa manipulá-las com maestria. Não me diga que veio até a Academia sem saber ao menos o básico?

 Minha retórica soou muito rude e me arrependi naquele momento. Annanis abaixou a cabeça e não pude ver o que se passava em seu rosto até que ele se virou para mim, com aquele mesmo sorriso afetado que tinha me dado mais cedo na biblioteca; aquela feição no rosto de que nada importava e aquele sorriso que poderia ultrapassar qualquer obstáculo. Tamanha confiança me deixou desconfortável. Quem era eu para criticar a determinação dele? Como poderia, sem entender nada sobre sua história ou de onde ele vinha, dizer o que ele devia ou não fazer? 

— Você não me disse seu nome. — Ele falou com aquele sotaque atravessado e eu parei. Ele deu mais um passo e parou, virou-se, olhando-me nos olhos, com aquele sorriso afetado preso no rosto. 

— Alanno — eu disse, enquanto coçava o braço esquerdo, encabulado.

 Nunca cheguei a me apresentar para ele e tinha pedido que confiasse em mim e seguisse minhas instruções. Talvez todos esses anos, estudando e sendo reservado nas minhas relações no campus, tenham realmente afetado minhas habilidades de socialização. Quão estúpido eu podia ser! 

 Meu autoflagelo foi interrompido quando ele voltou a falar.

— Bom, Alanno, aparentemente tenho três meses até as provas e agradeço pela sua ajuda. — Ele estendeu a mão para me cumprimentar e o choque foi tamanho que até o sorriso convicto dele se desfez ligeiramente ao ver minha cara de espanto.

 Era claro agora o quão ignorante ele era. Oferecer contato físico com outro mago desconhecido era algo impensável. Cada ser vivo tem uma barreira natural em volta do corpo — uma fina barreira que protege o corpo da influência das linhas de mana externa.

 Apenas com uma poderosa carga de energia se pode romper essa barreira. A única exceção é quando um ser vivo toca a superfície de outro. Quando esse contato corpo a corpo acontece, as barreiras misturam-se e é possível acessar o âmago do outro indivíduo, de forma bem mais fácil.

 Após alguns segundos observando, estonteado, o sorriso de Annanis virou uma linha plácida no rosto, mas a mão pendia pendurada, oferecida para mim. Reconsiderei ele e aquele gesto e resolvi aceitar. Eu era um mago de primeira classe com três anos de experiência, e não havia nada que um novato pudesse fazer que me pegaria de surpresa.

 Eu ofereci a mão e ele a apertou calorosamente. Eu correspondi com um sorriso torto e não falamos mais nada. Annanis caminhou quieto, contemplando a paisagem do campus e os outros alunos que passavam. Volta e meia nossos olhares se cruzavam para reconhecer a presença um do outro ali. Quando finalmente chegamos à ponte que cruzava o rio, caminhamos até a metade dela e eu parei. 

 A ponte era um arco de pedra cinza polida não muito alta, larga o suficiente para passar uma carroça e, com comprimento de quase dez metros, as vinhas cobriam o parapeito e as bordas. Do alto do arco dava para ver o topo do telhado do dormitório por detrás das árvores. Apontando-o, eu falei: 

— Vê o telhado daquele prédio? É lá onde é o dormitório. Basta seguir este caminho cortando a estrada da feira e você encontrará uma outra estrada perpendicular que passa por entre o bosque. Lá, procure por Bello, acredito que ele ainda seja o responsável pelos dormitórios masculinos.

 Annanis agradeceu mais uma vez e partiu. Acompanhei o seu trajeto por algum tempo antes de me virar para seguir meu caminho. O livro que eu carregava durante todo esse tempo debaixo do braço esquerdo era pesado e estava começando a incomodar o meu ombro, mas não lembro de ter pensado, em nenhum momento, sobre o fardo da caminhada extra que fiz naquela tarde.

 Ao retornar ao meu dormitório, deixei as coisas no meu quarto e fui até o salão de banho. Após o banho, comi dois saborosos pedaços de torta de carne — suculentas tortas, com uma massa fofa que faz o recheio desabrochar todo dentro da boca —, uma das grandes maravilhas da Academia. 

 Logo depois fui para cama e mal li duas ou três páginas do livro que tinha trazido comigo antes de pegar no sono. Naquela noite, sonhei estar sobre a ponte que cortava o rio da Academia, uma neblina prateada me cercava de todos os lados, enquanto observava uma sombra disforme que me encarava de uma das margens. 

 O sonho foi vago e logo depois lembro de entrar na biblioteca e assumir meu posto de trabalho junto à escrivaninha. Lembro de começar a transcrever alguns registros, quando uma sombra vulgar encobriu a luz que vinha dos vitrais. Ao olhar para cima, a sombra incomodante se transformou em meu pai. Suas palavras foram as últimas lembranças dos meus sonhos, as palavras que me fizeram despertar e descobrir que estava atrasado para a primeira aula.

 

***

 

 A manhã tinha começado mal, cheguei quase na metade da primeira aula e Correan, o mestre da disciplina de Triangulação de Cores, repreendeu-me de forma leve. Não era um aluno que costumava chegar atrasado nas aulas e nem era conhecido por indisciplina, o que me deu algum desconto, contudo o sonho com meu pai naquela noite tinha me deixado incomodado como sempre me deixava. Tinha aquele sonho com certa frequência desde que recebi uma carta de meu pai solicitando meu retorno para casa. 

 Com dois anos na Academia, estudando e se dedicando firmemente, o aluno que era aprovado recebia o direito de usar o anel de mestre da cor. Quando com dois anos, para surpresa de minha família, eles receberam as notícias de que eu tinha sido aprovado para receber o anel de safira azul, tornando-me mestre de cor, meu pai me mandou uma missiva, solicitando o meu retorno para casa. 

 Na carta ele dizia como estava contente pela minha realização e como os investimentos que ele tinha feito para meu futuro tinham vindo a calhar. Ele tinha em mãos uma oportunidade única de negócios em que um mago formado seria muito útil e que seria muito bom me receber de volta à família. 

 Eu não tinha qualquer interesse em retornar para casa, sentia que minha vida ali na Academia era perfeita e não queria sair dali. Os conhecimentos que adquirira e a beleza e paz daquele lugar eram tudo que minha alma desejava. Não tinha o menor interesse em uma vida de negócios de um mercador, nem a vontade de viver como um peregrino, fazendo negócios em todo canto sem nunca ter um lugar para me fixar. 

 Não, essa não era uma vida que eu gostaria. Meu desejo era continuar na Academia, formar-me como mestre em todas as cores e adquirir o título de mago branco; e viver naquele lugar dando aula para o resto da minha vida. Decidi ignorar meu pai e seguir como se nunca tivesse recebido aquela carta. 

 Infelizmente, a vida não deixa seus problemas esquecidos. Meu pai não ficou nada contente quando meses se passaram sem que eu desse uma resposta ou aparecesse em minha antiga casa. Sua segunda carta foi uma intimação, dizendo que eu deveria prestar contas, pois ele tinha arcado com as despesas dos meus estudos e que eu deveria retribuir o investimento dele, que nenhum fundo seria enviado a mim até que eu me apresentasse em casa. 

 Minha estratégia para a resolução desse problema foi mais uma vez ignorar o problema. Inscrevi-me para trabalhar na Academia em troca de uma bolsa assistencial e nunca enviei uma resposta ao meu pai. Como meus gastos eram bem enxutos, não tive problemas para me adaptar à condição reduzida de fundos. Eu ainda tinha alguns fundos que tinham sido enviados anteriormente e os tinha guardado para uma eventual emergência. Dinheiro não seria um problema que me faria voltar para casa.

 Foram as cartas seguintes que me trouxeram os pesadelos. Quando ameaçar me deserdar e nem a solicitação enviada direto ao diretor da Academia teve o efeito desejado, ele resolveu me intimidar, ameaçando me arrastar porta afora da universidade, sendo eu mago ou não. Pois, de acordo com ele, minha dívida com a família valia mais que qualquer graduação que eu pudesse vir a conseguir.

 E assim os pesadelos começaram, um pesadelo que não importava em que lugar do campus eu estivesse. Meu pai sempre me encontrava, sempre repetia a mesma frase que me fazia acordar todo suado e em pânico: “Vim te buscar!”

 Assim, mesmo com a complacência do mestre Correan em relevar meu atraso, como acontecia todas as vezes que tinha a amargura de ter pesadelos com meu pai, o dia de aula estava perdido para mim. Não conseguia prestar atenção nas disciplinas e minha mente ficava voltando ao pesadelo com meu pai aparecendo para me buscar e eu inutilmente seguindo-o sem resistir. 

 Para meu desalento, quando cheguei à biblioteca após as aulas, para me apresentar aos meus ofícios, Dazze, a aluna a qual eu ia substituir o turno, não estava nada contente e eu era o culpado de seus problemas. 

— Finalmente, Alanno. Já não estava aguentando mais. Aquele caipira que você resolveu ajudar não para de me perturbar! Devia ter escorraçado ele, como sempre fazemos com esse tipinho — disse ela. De braços cruzados sob os bustos e com os pés batendo ritmicamente no chão, seu ultraje era um espetáculo e eu era o infeliz público. 

— Mas não, o sujeito me aparece aqui de hora em hora perguntando se já teve sua liberação para a biblioteca concedida. Não basta dizer para ele que o mestre Talannor analisa quando bem entender as requisições. Acredita que ele teve a audácia de perguntar se poderia, pessoalmente, conversar com o mestre Talannor? — Dazze fez uma careta, revirando os olhos em uma encenação fajuta de ultraje. — Veja se eu teria a coragem de perguntar ao mestre se ele poderia receber um caipira sujo para mendigar tolices para ele! 

 As acusações e a revolta na voz de Dazze me pegaram de surpresa e o tom de voz, nada discreto, encheram-me de vergonha; vários alunos que estavam de passagem observavam a cena e não consegui não ficar vermelho. Como qualquer uma daquelas coisas poderia ser culpa minha? De fato, eu não o “escorracei” da biblioteca como ela tinha dito, mas tampouco eu poderia impedir ele de solicitar a entrada na biblioteca, afinal, era direito dele.

 Cabelos escuros cacheados, rosto fino com as maçãs do rosto rosadas e olhos verdes, Dazze era uma nobre de família proeminente e muito poderosa, descendente de uma longa linhagem de magos da qual ela se gabava constantemente. Trabalhava na biblioteca apenas como forma de punição por uso de magia não autorizada dentro do campus. Pelos boatos, ela se envolveu em uma disputa com outra garota e a fez ‘voar’, com uma forte rajada de vento, alguns metros e se estatelar contra o rio. A garota quebrou um braço na queda, mas não quis prestar queixas contra Dazze. 

 Nenhuma das testemunhas do caso foi encontrada para prestar queixas contra ela. Contudo os mestres precisavam tomar uma atitude com relação à aluna ferida. Deram uma punição mais branda, fazendo-a trabalhar na biblioteca por dois períodos letivos inteiros, quando na verdade esse seria o caso de uma expulsão.

 Resolvi não retrucar qualquer uma das reclamações de Dazze e resumi seu espetáculo a um aceno humilhado de cabeça e segui para dar início às minhas atividades. Não demorou muito tempo para que Annanis voltasse a aparecer na biblioteca. Eu o vi entrar pela porta momentos antes que ele percebesse que era eu quem estava sentado atrás da mesa de atendimento da biblioteca. Vi mesmo de cabeça baixa o sorriso afetado no rosto dele quando ele vinha a passos largos na minha direção. 

 Não levantei a cabeça hora nenhuma para reconhecer sua presença, mas acompanhava sua aura aproximando-se de mim enquanto me mantinha ocupado com meus registros, tintas e anotações. 

— Bom te ver novamente, Alanno — ele disse. Quando levantei a cabeça, o sorriso afetado e determinado estava ainda mais radiante à minha espera, bem na frente da minha mesa. 

— Como vai, Annanis? Veio verificar sua liberação para acesso à biblioteca? — questionei-o. Se é que era possível, o sorriso rachado na cara dele se abriu ainda mais para dar assertividade ao que queria. — Aguarde um momento, vou ver se o mestre Talannor já analisou seu pedido. — Levantei-me e fui até o corredor que dava acesso à biblioteca — a sala de mestre Talannor ficava na segunda porta à esquerda do corredor. 

 Fiz questão de não olhar para trás, pois sentia aquele sorriso retumbante em minhas costas. Abri a primeira porta que dava para uma antessala de espera e atravessei a sala para bater na porta do mestre. Após uma leve batida e uma espera de alguns segundos ouvi a voz do mestre permitindo minha entrada e abri a porta, vagarosamente, para não perturbar a sua concentração.

 Como de costume, a sala dele era um amontoado de livros. Estantes rodeavam todas as paredes da sala, que não possuía janelas. A iluminação era feita por gemas, que ficavam penduradas por um lustre muito bem ornamentado, no centro do aposento, logo acima da mesa. Mestre Talannor analisava alguns livros abertos à sua frente, enquanto escrevia em outro.

 Ele era o mestre responsável pelo acervo da biblioteca; era ele quem classificava todo o conteúdo que a biblioteca comprava ou ganhava; permitia ou negava acesso aos arquivos e gerenciava todo o prédio.

 Muito frequentemente ele passava horas trancado em sua sala, transcrevendo e lendo diversos documentos. Apesar de ser novo para um mago, com seus 58 anos, a sua exclusão dentro da sala abarrotada de livros fazia sua ausência de sol e de ar fresco dar uma aparência de um homem com mais de 100 anos de vida. A barba bem-feita, a cara chupada e os óculos de lentes redondas e fundas que o ajudavam a ler, davam a ele um semblante austero. 

 Entrei a passos tímidos e fechei a porta por detrás de mim.

— Mestre… — disse e aguardei que ele se pronunciasse. Em nenhum momento ele tirou os olhos das anotações que fazia. 

— Pois não, Alanno? O que deseja? — Sua voz era desprovida de qualquer emoção. Se ele tinha se irritado com a minha entrada, eu não conseguia dizer; dei continuidade ao que tinha ido fazer. 

—Mestre, deixei ontem alguns arquivos com o senhor junto de uma requisição de acesso à biblioteca… — disse, deixando minha voz morrer. 

 Neste momento, o mestre Talannor parou por um momento de escrever e levantou brevemente os olhos que me atravessaram duramente. 

— Ah sim! O garoto. A requisição está ali ao lado daqueles livros. — Ele apontou para o canto da sala, onde existia uma mesa que ficava ao lado direito da porta com alguns documentos e livros em cima dela. — Pode pegar — ele disse, voltando a baixar a cabeça para escrever em seu livro de anotações de onde tinha parado.

 Eu engoli em seco e me virei para ir até a mesa. O documento estava logo em cima de uma pilha de papéis e o peguei logo de cara, reconhecendo a letra de Annanis. Agradeci ao mestre com uma mesura sem dizer qualquer palavra e me retirei pela porta.

 Mestre Talannor era severo, mas muito justo, já o tinha visto ficar irritado com dois ou três aprendizes e sua fúria era histórica. Nunca tive o desprazer de despertar seu destempero mas, mesmo assim, sempre ficava nervoso perto dele. Quando deixei a sala,  meu alívio era palpável no ar.

 De volta ao salão de entrada, Annanis me aguardava solene. Quando enfim entreguei o documento para ele, sua figura confiante pareceu trincar bem diante dos meus olhos. — Negado! — O ar saiu incrédulo de sua boca. Orello que estava na outra mesa, acompanhava tudo como se fosse um espetáculo, soltou um sorriso de escárnio, olhando-me travesso, esperando que fosse tecer algum comentário.

 Mantive meu luto por Annanis em silêncio, enquanto ele observava de cara amarrada a folha, claramente maquinando algo. Imaginei que ele estivesse pensando na viagem que teria que realizar de volta para casa e recuperar, talvez, todo o dinheiro que com muita dificuldade ele provavelmente teve de juntar para chegar até aqui. Refleti um pouco sobre o que eu faria se tivesse de voltar para casa derrotado com meus sonhos em cacos e tivesse de viver sobre os caprichos de meu pai. 

 Quando ele tirou os olhos da folha e me encarou, aquele sorriso foi uma das magias mais poderosas que tive a experiência de presenciar em toda minha vida.

— Gostaria de falar com o mestre Talannor, por gentileza. — Intimou. As palavras chocaram-me, como poderia? Ele já tinha sido recusado, o que mais restava para ele? Que tipo de humilhação a mais ele se sujeitaria antes de desistir e retornar para casa?

 Antes que eu pudesse responder, Orello se levantou da mesa em que estava, seu porte magro e esguio, a pele escura e os cabelos encrespados destacavam os olhos pretos e ardentes. Ultrajado, ele falou: 

— Caipira, seu pedido foi recusado, não resta mais nada para você aqui. Por que não se retira de uma vez? 

 Annanis apenas olhou para Orello de canto de olho, como se um inseto apenas tivesse zumbido em seu ouvido e incomodado sua concentração. Sua pergunta tinha se dirigido a mim e aquele sorriso poderoso me enfeitiçava com tamanha determinação.

 Orello tinha começado a dar a volta à mesa como se pretendesse remover Annanis do salão a pontapés. Ergui a mão para ele e ele pausou. O ultraje no seu rosto mudou de volta para aquele sorriso zombeteiro, mas não durou muito, pois quando falei, incredulidade era tudo que se passava em seu rosto. 

— Verei o que posso fazer, Annanis, não sei se o mestre Talannor poderá te receber, mas irei perguntar. Me siga. — Orientei-o.

 Segui pelo corredor central até a antessala do mestre, deixando Orello para trás estarrecido com a boca aberta. Annanis me seguiu um passo atrás. Quando finalmente entramos, fiz uma menção para que ele se sentasse em um dos sofás e me aguardasse. Fui até a porta da sala do mestre e dei uma batida leve. Mestre Talannor soltou um sonoro “Entre” — desta vez sua voz deixou transpassar uma leve irritação. 

 Entrei com passos ligeiros na sala e toda determinação e encanto do sorriso decidido e confiante de Annanis se desfizeram no momento que fechei a porta. Mestre Talannor estava como sempre focado em seus livros e eu não conseguia fazer meus pensamentos tomarem forma. 

 O que eu estava fazendo? Por que eu estava ajudando aquele garoto que eu mal conhecia? Meu único objetivo na Academia era estudar e adquirir o máximo de conhecimento que eu podia, me tornar um mago branco e, por fim, dar aula na Academia e viver minha vida feliz dentro do campus. Para que eu estava buscando confusão em cima de uma decisão que já tinha sido tomada?

— Pois não, Alanno, o que deseja desta vez? — perguntou o mestre. Após um tempo de silêncio, a voz de Talannor interrompeu meus pensamentos, irritada e inquisitória, não consegui evitar de gaguejar enquanto falava. 

— Me-Mestre… — Engoli em seco e continuei: — O rapaz o qual o senhor recusou a solicitação de acesso à biblioteca está na sala aqui fora e gostaria de conversar com o senhor.

 Talannor largou a pena que usava para escrever, pousando-a em um descanso próximo à tinta. Retirou os óculos, que usava para leitura, do rosto e me lançou um olhar escrutinador. Por um momento achei que ele fosse gritar comigo por ter interrompido seu trabalho. 

— E do que se trata? — perguntou. Sua voz era grave, mas eu resisti ao olhar dele e respondi o melhor que pude. 

— Mestre, ele gostaria de rever a decisão de acesso à biblioteca. — Minhas pernas estavam trêmulas e sentia que a qualquer momento Talannor iria gritar comigo e eu me viraria e começaria a correr.

— E por que eu deveria recebê-lo, Alanno? Pelo que Dazze me informou, ele foi descortês e causou uma confusão na biblioteca logo pela manhã. Ela me disse que tal indivíduo não seria digno de ter acesso aos arquivos da biblioteca e que eu não deveria dar qualquer permissão. — Enquanto falava, o mestre Talannor encostou-se na cadeira e relaxou os braços, limpando os óculos com um trapo que tinha tirado de algum lugar. 

 Talannor não tirou os olhos de mim em nenhum minuto e quando juntei coragem para falar novamente, um longo silêncio plácido tinha se estendido em toda a sala, ficando ainda mais difícil de respirar. 

— Bom mestre… — Umedeci os lábios para voltar a falar. — Não conheço o garoto, mas ele foi respeitoso comigo todo o tempo e entendo a ansiedade dele. Me parece que ele veio de longe e está decidido a se tornar um mago — expliquei.

 Fiquei parado um longo tempo, inquieto, enquanto mestre Talannor me analisava pensativo. Ele terminou de limpar o óculos e o colocou em cima de um dos livros na sua frente, por fim falou. 

— Certo, me parece que ele realmente é dedicado. Um bom atributo para um aspirante a mago. Ele conseguiu recrutar até você para o lado dele, isso mostra de fato determinação. — Um sorriso quebrado partiu o rosto de Talannor e eu fiquei completamente sem jeito para aquela afirmação. — Diga ao garoto para entrar, vamos ver o que pode ser feito.

 Quando abri a porta não consegui desviar os olhos de Annanis, sua presença na antessala era com um enorme buraco negro de ansiedade. Acenei para que ele entrasse e ele se levantou. Com passos largos atravessou por mim e adentrou o recinto pela porta. Pensei em me retirar; minha missão já estava cumprida, mas mestre Talannor foi compulsório em dizer: 

— Pode ficar, Alanno. — Não me dando qualquer alternativa de fuga. 

 Fechei a porta e me dirigi a um canto à direita na sala, tentando parecer invisível em meio às estantes e aos livros que ocupavam as bordas do cômodo. Talannor e Annanis encaravam-se; a expressão de Annanis espelhava a expressão austera do velho mestre.

— Mestre Talannor, é uma honra conhecer o senhor. — Os olhos de Annanis estavam fixos nos de Talannor, até mesmo quando Talannor arqueou levemente a sobrancelha para o sotaque cacofônico de Annanis, mas ele pareceu não se abater. 

— Pelo que me foi informado. — Mestre Talannor desviou o olhar levemente na minha direção e eu congelei no lugar, sem nem mesmo respirar. — Você deseja uma revisão da sua autorização de acesso à biblioteca — complementou Talannor, conciso. 

— Exato, mestre. Gostaria de entender por que meu acesso foi negado e se existe algo que eu tenha feito de errado para que eu possa corrigir — respondeu. Apesar do sotaque forte, Annanis era preciso com as palavras e não deixava dúvidas no que queria dizer.

 Talannor o analisou por um breve período de tempo e então perguntou:

 — Por que você quer ser um mago? — Annanis respirou fundo e respondeu sem muita ponderação, era claro que aquilo era algo que ele já tinha na ponta da língua:

 — Mestre, me perdoe a franqueza. Este é um mundo repleto de magia, apenas um tolo viria a este mundo e decidiria não aprender nada sobre o assunto. — Annanis respondeu sério. Neste momento, achei que o mestre Talannor iria nos expulsar da sala por Annanis ter dado uma resposta tão simplória, mas o velho mestre amoleceu o queixo e abriu um sorriso dúbio. 

— Está certo, aprovarei sua entrada — concretizou. Para meu alívio e meu desalento, antes que Talannor pudesse dizer qualquer outra coisa, Annanis deu um passo à frente e estendeu o braço com a mão aberta para um cumprimento. 

 Os olhos do mestre se alargaram por uma breve fração de segundo, olhando da mão para o rosto de Annanis, com aquele sorriso vitorioso. — Agradeço a oportunidade, mestre, será de grande utilidade o acesso aos conhecimentos da biblioteca, não o decepcionarei, pode acreditar! — alegrou-se Annanis.

 Mestre Talannor virou-se para mim, localizado no canto, estarrecido pela cena. 

— De fato você vai precisar de muito conhecimento, pelo que vejo, terá um longo caminho a percorrer — professou o mestre e complementou: — Alanno, você se responsabiliza por ele. Mostre os livros que ele vai precisar para adquirir os conhecimentos básicos para as provas e para o caminho de um mago. Agora vão, tenho muito trabalho aqui — finalizou. O mestre nos dispensou com um gesto de mão, enquanto retomava seus óculos. 

 Fiz uma mesura estonteada para o mestre, acatando suas ordens. Annanis deu um passo atrás, recolhendo a mão, envergonhado, e fez uma mesura torta, tentando me espelhar e nos retiramos da sala. Na antessala era como se uma vida tivesse se passado e não apenas alguns minutos; respirei fundo, recuperando a estabilidade das minhas pernas antes de começar a andar.

 Annanis examinava a mão com um aspecto curioso no rosto. 

— Magos não se cumprimentam fisicamente — eu disse e ele me olhou curioso. 

— Por quê? — A pergunta saiu de imediato da boca dele.

— Você vai entender melhor quando estudar e compreender sobre o funcionamento das linhas de mana — eu disse, de forma didática, e continuei: — Normalmente, os magos não têm qualquer contato físico um com o outro. — Ele fez uma cara confusa e eu completei: — Exceto, claro, se existe uma relação de confiança. — No momento em que disse isso, percebi o peso das minhas palavras, pois o sorriso afetado que ele me deu, deixou-me encabulado. 

 

***

 

 Apesar da vontade de Annanis de deliberadamente correr em direção à biblioteca, os procedimentos não eram tão simples. Documentos precisavam ser preenchidos e autorizações assinadas. Um termo de responsabilidade deveria ser assinado por ele junto de uma nota promissória para eventuais danos ao patrimônio da Academia.

 Orello não ficou nada feliz com a notícia da permissão do acesso de Annanis à biblioteca e sua ajuda com os papéis não foi nada além de pura obrigação, que ele cumpriu com o mínimo de entusiasmo. 

 Quando, finalmente, tudo estava de acordo, mais de uma hora tinha se passado e Annanis não conseguia esconder seu descontentamento com a demora. Não fez nenhuma reclamação, mas era notória a impaciência em seu rosto, no bater de pernas constante e nas idas e voltas que fazia no salão, enquanto aguardava. Por fim, quando finalmente adentrou o salão principal da biblioteca, ele ficou extasiado. 

 A biblioteca possuía três andares opulentos, repletos de livros. Seus corredores eram muito bem iluminados por gemas. Cada andar tinha salas particulares para estudo, mas também possuía mesas centrais onde os alunos podiam sentar-se para ler e fazer anotações.

— O que achou? — perguntei, com orgulho da biblioteca em que eu trabalhava. Definitivamente era uma das maiores do continente, perdendo apenas para a da Academia Militar. 

— Não esperava menos que isso, na verdade — ele disse. A resposta de Annanis me surpreendeu de leve, mas acredito que para um prédio tão imponente visto de fora, esperar algo inferior do lado de dentro seria tolice.

 Caminhamos até uma das mesas desocupadas no centro do piso. — Fique aqui, que vou pegar um livro para você começar a estudar — eu disse e me retirei. Já tinha uma boa noção do que seria uma boa leitura para alguém tão desprovido de qualquer conhecimento sobre magia como ele. Quando retornei alguns minutos depois, para minha surpresa, Annanis tinha desaparecido do lugar de onde eu o tinha deixado. Não demorou muito e eu o encontrei vagando entre estantes de livro, no final do primeiro andar.

— O que está fazendo? —Ele se assustou e se virou me dando um sorriso e um pedido de desculpas. 

— Estava tentando entender como os livros eram classificados. 

— Isso não é importante agora, escute. A sua autorização não te dá acesso aos outros pisos, então não fique perambulando por aí. — Ele confirmou com a cabeça e eu confirmei de volta, gesticulando para que ele me seguisse de volta às mesas.

— Veja, este livro vai te ensinar o básico que você precisa saber sobre o funcionamento das cores de mana, chama-se Os Princípios Básicos das Cores e Seus Efeitos na Natureza e é muito bom para novatos como você — expliquei. — Tudo que está nele é conhecimento básico; então você tem que saber tudo que está aqui, pois é fundamental para os conhecimentos seguintes e tudo será cobrado nas provas de admissão. O livro está escrito em Parnamim. Gostaria de uma versão em outro idioma, algum idioma da sua terra natal talvez? — Ele me deu um sorriso irônico e disse: 

— Não, este está bom. — E mais uma vez, minha tentativa de arrancar informações da origem dele fracassou.

 Eu deixei Annanis para retornar às minhas atividades e, envolto no trabalho, meus pensamentos ficaram focados nas tarefas cotidianas que tinha para executar na biblioteca. Após horas acertando registros e prestando atendimento a outros aprendizes, o fim do dia foi chegando com a graça que as horas ocupadas de trabalho têm. 

 No fim do turno, os alunos responsáveis pela biblioteca se juntam para guardar livros e organizar estantes. O trabalho era sempre feito em turnos e hoje seria o meu. Aproveitei para passar na mesa na qual tinha deixado Annanis para ver como ele estava indo com a leitura.

 Esperava encontrá-lo em uma de duas formas: perambulando pela biblioteca mais interessado no espaço do que nos estudos, isso indicaria o quanto mal interessado ele era sobre as disciplinas e que na verdade, ele realmente não tinha a capacidade nem a dedicação para se tornar um mago. 

 Achava essa possibilidade mínima diante de todo o esforço que ele fez para conseguir acesso à biblioteca, mas, às vezes, as longas horas de leitura e dedicação mental não eram algo que os novatos acreditavam ser o caminho de um mago, até dar de cara com a realidade.

 A segunda possibilidade a qual eu esperava realmente encontrá-lo, era ele entrincheirado no livro, lendo metodicamente cada página. Me lembrava dos primeiros livros que meu pai adquiriu para que eu pudesse estudar e as longas horas perdidas, tentando decifrar os conceitos filosóficos e os poemas cheios de significados ocultos. A lembrança de meu pai me fez mais uma vez recordar de meus pesadelos e logo voltei para o presente.

 Para minha indigna surpresa, nenhuma das duas possibilidades às quais eu havia projetado minhas apostas se tornaram realidade. Quando me aproximei da mesa em que Annanis estava sentado, ele estava com um livro diferente nas mãos e o livro que eu tinha entregado, jazia, fechado, no meio da mesa.

— O que está fazendo? — perguntei, aborrecido. 

— Alanno, veja isso! — Ele me disse alarmado, ignorando meu olhar severo de reprovação para o desdém dele com o livro que o tinha dado para ler. Ele voltou algumas páginas do livro que estava lendo e o virou para me mostrar. 

— Olha isso, que assombroso! — Na página que ele tinha virado para me mostrar havia a pintura em cores vivas e muito bem definidas, com contornos precisos e descrições bem detalhadas do desenho de um elfo.

 A imagem tinha, como exemplo de comparação, a sombra de um desenho humano para dar noção da altura da criatura. Mais baixo que um ser humano adulto médio, olhos esbugalhados de íris amarelo escarlate, com pupilas negras como a noite, lembravam os olhos de um poderoso felino. Os dentes, pontudos como presas; um nariz fino e protuberante dava lugar às narinas largas e fundas. Essas eram características únicas ao fenótipo da raça dos Elfos. 

 O livro que ele lia era um glossário muito bem detalhado, com diversas descrições sobre as características físicas e um pouco das características sociais das raças não humanas, chamado A Antropologia das Raças e as Analogias da Criação. Era de fato um livro muito interessante e muito manuseado. Todo aluno acabava cedendo à curiosidade e acabava levando-o para ler em algum momento. A capa surrada e as páginas desgastadas eram o sinal claro disso. Eu mesmo tive meu momento para apreciar as figuras e entender um pouco mais sobre a morfologia das outras raças. 

 Mesmo assim, a voz infantil e a descrença jovial nos olhos dele para a imagem grotesca do elfo não exauriu meu aborrecimento. 

— Por que ler isso? Nada disso é importante para as provas — eu falei em tom amargo. Ele olhou para mim e para a imagem do elfo na página algumas vezes, enfeitiçado com a criatura e então fechou o livro e seu semblante infantil ganhou alguns anos. 

— Já terminei de ler o livro que você me trouxe — ele disse, em voz neutra.

 Meu ceticismo era aparente e não fiz questão de disfarçar. O livro dos princípios das cores não era uma literatura rápida de ler e nem tão simples assim para se entender de primeira. Se ele esperava me convencer que em poucas horas leu um livro de mais de quatrocentas páginas, ele precisaria se esforçar bem mais do que isso, pensei. 

 Annanis não fez nenhum comentário e me encarava sem expressão no rosto. — Pois bem — disse descrente —, se já terminou com este, o próximo que pode pegar para ler é A influência das Palavras e Entonação — eu afirmei, sabendo que ele não teria a menor condição de entender claramente o conteúdo desse livro sem ter compreendido o do outro. 

 Ele abriu aquele sorriso afetado típico dele e se virou como se soubesse exatamente onde ir buscar o livro. — Hoje não — eu disse e ele parou. — Já estamos encerrando as atividades hoje aqui na biblioteca; é melhor deixar para amanhã — eu afirmei, apaziguando um pouco meu temperamento. 

— Obrigado mais uma vez, Alanno, e até amanhã — ele agradeceu-me com uma leve mesura de cabeça e tamanha foi a sinceridade que fiquei ali parado perguntando-me se talvez fosse o sotaque dele que estivesse maculando as intenções das suas palavras, enquanto ele se virava e ia embora.

 

***

 

 No dia seguinte, minha manhã foi tranquila. Não tive pesadelos com meu pai e minha noite de sono foi maravilhosa. Sonhei com as apetitosas tortas de carne do refeitório e acordei esfomeado. Comi algumas fatias de pão com manteiga e tomei leite fresco pela manhã. Já idealizava o dia tranquilo que teria pela frente.

 As aulas naquele dia aconteceriam no laboratório de alquimia, onde eram praticados os ensaios de magia, envolvendo a fabricação de poções e elixires. Meus aborrecimentos com Annanis era passado. De certo, quando voltasse a vê-lo, ele estaria arrependido de tentar me enrolar com a leitura e viria me pedir socorro.

 Pensar em como o estava tutorando a pedido do mestre Talannor me fez perceber como eu estava indo em direção ao caminho de mestre. Se eu me tornasse um mestre em todas as cores e adquirisse o título de mago branco era exatamente isso que eu iria fazer: me tornaria um professor e teria alunos como Annanis o tempo todo. Resolvi que eu não deveria me irritar com a insubordinação de um aluno e sim ter pulso firme para mostrar como um mago de verdade deve agir.

 Tudo isso se passava pela minha cabeça e eu já me idealizava como um mestre, dando aula na Academia. Quando cheguei à biblioteca para meus ofícios naquela tarde foi que essa doce pretensão se desfez. 

— Finalmente chegou. — Dazze me cumprimentou, com voz debochada. — Parece que seu amiguinho caipira é um comedor de livros igual a você. Ao menos, ele limita a dieta dele somente aos livros, diferente de você. 

 Mantive minha cara fechada, não era a primeira vez que me insultavam por estar um pouco acima do peso. 

— Do que está falando? — respondi, em tom neutro. Eu já tinha aprendido que era pior demonstrar qualquer fraqueza ou sinal de irritação pela chacota do que se manter neutro e impassível aos apelidos. 

— Parece que seu amigo “botas finas” está na biblioteca desde que ela abriu, devorando um livro atrás do outro. — Quem me respondeu foi Orello, eu não o tinha visto quando entrei. Ele estava no canto da sala, cochichando com dois outros alunos, que também trabalhavam na biblioteca. Seu sorriso zombeteiro era largo, no rosto magro e ossudo. 

 Orello também vinha de uma família nobre e o único motivo que o fazia trabalhar na biblioteca era que sua família era uma grande colecionadora de livros raros. Comentava-se nos corredores que a coletânea da família dele era quase tão grande quanto à da biblioteca da Academia. Seu interesse em trabalhar na biblioteca era, simplesmente, para agradar a família que queria que ele entendesse sobre os métodos de organização e classificação da Academia. 

 Resolvi não cair na deles e entrei no salão principal para procurar Annanis e entender do que eles estavam falando. Logo o vi sentado na mesma mesa que eu o tinha colocado no dia anterior. Uma pequena pilha de livros fazia um forte ao redor dele. 

 Ele estava tão concentrado na leitura que nem percebeu minha chegada. Ao chegar perto pude tomar conhecimento dos livros que estavam à sua volta. No canto mais afastado da mesa estava A influência das Palavras e Entonação, o livro que tinha dito para que ele estudasse, na noite anterior. Ao lado dele, o glossário da Antropologia das Raças e as Analogias da Criação

— Boa tarde, Annanis. — Raiva e irritação vibravam em minha voz e meu tom foi mais alto do que o aceitável dentro da biblioteca. Cabeças viraram-se na minha direção, intrigadas pelo tom de voz possessa. Respirei fundo para me acalmar, tentando lembrar da minha resolução feita anteriormente, de não me irritar com um aluno indisciplinado. 

 Annanis se assustou com meu tom de voz e ergueu a cabeça do livro que lia em uma chicotada, como se tivesse recebido um golpe, com os olhos arregalados. Ao me ver diante dele, soltou um “oh!” de surpresa, aliviou a expressão no rosto e me cumprimentou. 

— Boa tarde, Alanno, bom te ver. Terminei o livro que tinha me indicado, qual devo pegar em seguida?

 As palavras dele foram como a última gota d'água em uma represa prestes a estourar e não consegui segurar toda a minha frustração e aborrecimento. 

— Como assim, terminou? — Meu tom de voz saiu como um grito e Annanis, por reflexo, apoiou-se no encosto da cadeira, de olhos arregalados, assustado com minha reação explosiva. 

 Respirei fundo inutilmente, tentando me acalmar. 

— Se realmente já leu completamente, me diga: qual o significado das cores? — Meus olhos ardiam de fúria e Annanis se ajeitou desconfortável na cadeira, olhando para os lados, vendo que era o centro das atenções da biblioteca.

— Bem… — ele começou e parou para limpar a garganta, claramente constrangido — a resposta para isso é complexa, as cores têm um amplo significado. Se fosse resumir, elas são o estado fundamental da energia que compõe toda a matéria, ou ao menos é isso que todos os filósofos acreditam. — Ele respondeu e o sotaque dele era ainda mais irritante do que nunca.

— Quão importante é o uso dos verbos e a entonação para manipular as linhas de mana? — eu continuei, sem piedade. 

— Não são de nenhuma importância. As linhas de mana sofrem influência a partir da vontade do mago. Em suma, o desejo do mago é tudo que importa. Se usa a entonação e o uso de verbos para influenciar a linha de mana mais como um reforço do desejo do manipulador; as palavras usadas pouco afetam o trançar das linhas. 

 Pensei na pergunta mais complexa que pude extrair da minha mente raivosa e a arremessei, esperando que ele caísse na minha cilada. 

— Quais são os elementos básicos das cores? — Ele parou e me analisou por alguns segundos. Quando meu sorriso de vitória começou a vazar, ele respirou fundo e começou: 

— Bom, é incorreto dizer elemento básico, pois como Arnnennio’s cita no manuscrito de Fazzanneres, “o fogo está para o vermelho, assim como a água está para o azul e se podemos considerar o fogo e a água um elemento, não podemos dizer o mesmo do sol, que está para o amarelo. O sol, ao mesmo tempo que irradia grande quantidade de mana amarela, também irradia mana vermelha”. Com isso, o correto a se dizer é que alguns elementos naturais sofrem mais influência de determinada cor de mana que outros.

 A cadência das respostas, junto ao sotaque carregado me irritavam, mas as respostas didáticas e precisas eram como uma adaga no meu ego. O pior de tudo foi quando Annanis me encarou consternado. 

— Você está bem, Alanno? — A preocupação na voz dele era genuína. O salão central da biblioteca tinha virado um pequeno espetáculo com vários alunos nos olhando e risinhos surgindo do fundo da plateia. 

— Estou ótimo! — respondi. — Você parece estar se dedicando realmente, pegue para ler A Trindade da Força. — Sem esperar que ele respondesse qualquer coisa, virei-me e saí, enquanto risos abafados ecoavam nas minhas costas.

 Durante aquela tarde me apeguei ao trabalho e ignorei todos ao meu redor. Os murmúrios zombeteiros dos meus colegas de trabalho e os olhares conspiratórios que eu recebia, fingi não ver ou ouvir. Concentrei-me nos meus registros, tintas, penas e folhas, ansioso pela passagem do tempo. 

 Recusava-me a acreditar que tinha perdido minha compostura; que havia deixado meu temperamento tirar o melhor de mim. Logo eu, que sempre fui tão dedicado aos estudos e sabia o quanto era importante um mago manter seu temperamento sob controle. Por um momento, minha mente vagou e ponderou se não era realmente melhor que meu pai viesse me buscar. 

 Como eu poderia me tornar um mestre da Academia se nem mesmo com um único aluno problemático eu conseguia lidar? Talvez — contemplei em minha desolação — Annanis se tornasse um mago e mestre na Academia muito melhor do que eu. A velocidade com que ele aprendia e o empenho para conseguir o que ele queria era algo que eu jamais conseguiria atingir.

 Encerrei meu turno de trabalho na biblioteca mais cedo naquele dia e saí de lá derrotado. Não queria ver Annanis na minha frente nem que fosse ajoelhado aos meus pés, pedindo perdão, mesmo que não houvesse motivos para ele pedir perdão. A frustração era gigantesca e nem fome que me levasse a frequentar o refeitório eu tive. Ao menos a frustração me garantiria um regime, meu desalento só piorava. Demorei a pegar no sono e quando finalmente acreditei que em sonho teria um pouco de paz, os pesadelos, com meu pai vindo me buscar, não me deixaram encontrar o descanso.

 Meu dia seguinte foi frustrante, não acordei atrasado, pois mal cheguei a dormir. Por não ter comido nada na noite anterior, levantei-me faminto e desci até o refeitório e comi como se não tivesse comido havia semanas. 

 O que não dormi durante a noite meu corpo reclamou durante a aula, pois tudo que fiz era olhar para um ponto vazio da sala e deixar a mente vagar, enquanto cochilava entre uma piscadela profunda e outra. 

 O mestre Correan chamou minha atenção duas vezes por não prestar atenção e na terceira, sugeriu que, se eu não pretendia permanecer em mente na aula, não precisava permanecer em corpo.

 Quando cheguei à biblioteca para assumir meu posto de trabalho, Dazze me recebeu com as tradicionais alfinetadas e zombarias. Talvez por perceber meu humor taciturno, resolveu colocar o dedo mais profundamente na ferida. 

 Fez uma comparação maldosa sobre o meu tamanho e quantos ferais meu corpo dava para alimentar. Depois, apenas para me informar, de forma maldosa que Annanis estava engalfinhado na biblioteca, desde sua abertura, disse que talvez o caipira desse para tapar o buraco dos dentes, mas que era muito provável que nem ferais comessem carne ruim, tão pouco fedendo a ácaros e mofo de livros.

 Não foi surpresa descobrir que mestre Talannor tinha me convocado à sua sala e já esperava uma reprimenda severa. Tinha perturbado o espaço de estudo da biblioteca e isso era uma das coisas que Talannor achava imperdoável. Ele dizia que a biblioteca era o templo do conhecimento e como todo templo necessitava de silêncio e contemplação.

 Bati na porta do mestre e aguardei sua permissão para entrar. Entrei sem muito pudor e aguardei pelo meu sermão. A sala permanecia a mesma, as pilhas de livros mudavam de volume ou lugar, mas nunca deixavam de existir.

 Desta vez, o mestre Talannor tinha um grande tomo aberto e estava traduzindo algum outro livro. Ele nunca precisava levantar os olhos para identificar quem estava na sua presença — certamente ele conhecia a aura de todos os alunos que trabalhavam na biblioteca.

— Ah! Alanno. — A voz do mestre soou jovial, fazendo-me empertigar com o tom. — Precisava mesmo falar com você! — Ele disse e largou o que estava fazendo; removeu os óculos e me encarou. 

— Sim, mestre — respondi em tom formal.

— O que houve ontem no salão da biblioteca? — Eu duvidava que ele não soubesse exatamente o que tinha acontecido. Estava me perguntando o porquê dele já não ter começado o sermão que eu já estava antecipando. 

 A voz bem-humorada me incomodava, estaria o mestre tentando me pegar em algum tipo de mentira? Pensei. Seria impossível mentir. Ele sabia tudo o que acontecia dentro da biblioteca. 

 Certa vez, livros raros começaram a desaparecer sem que ninguém tivesse notado, exceto o mestre Talannor, que descobriu que um dos alunos estava roubando-os e vendendo-os para um mercador às escondidas em Doxxima. 

 Se era a verdade que ele queria, eu não tinha por que mentir. 

— Me perdoe, mestre — eu comecei, enquanto ele me analisava, impassivo. — Perdi um pouco do meu temperamento ao auxiliar o rapaz, Annanis, que o senhor colocou sobre minha responsabilidade — disse e me calei. Mestre Talannor mexeu-se na cadeira, acertando a postura e após algum tempo, perguntou: 

— E o que aconteceu? — perguntou arqueando a sobrancelha grisalha. 

 Remexi-me, incomodado, coçando o braço esquerdo. O que eu poderia dizer... Se Annanis tinha alguma culpa da minha frustração, nem eu mesmo sabia o que era. Claro que, inicialmente, eu tinha achado que estava negligenciando os estudos, mas depois de ele responder as minhas perguntas, com veemência e exatidão, o único tolo em toda aquela situação era eu. Percebi que tinha ficado calado tempo demais e que Talannor me averiguava, curioso.

 Relaxei minha postura para uma posição normal — o mais normal que conseguia na presença dele, e respondi, genuinamente: 

— Eu fiquei frustrado com o desdém dele pelos livros que indiquei, para que ele estudasse para as provas. — O mestre deu uma balançada de cabeça assertiva e disse: 

— Entendo! Acontece que muitos dos jovens que vêm até a Academia não têm a disciplina necessária para se tornarem magos, é uma pena! — Ele disse com sinceridade na voz. — Acreditava que aquele seria um caso diferente, visto a determinação dele para conseguir acesso à biblioteca.

— Não é isso… — Eu o interrompi e me arrependi, com minha exasperação. Talannor fez uma careta, mas ficou aguardando para que eu terminasse o que tinha começado a dizer. Não tive escolha senão confessar minha estupidez. 

— Não é isso, mestre — expliquei. — Na verdade eu achei que ele estava negligenciando os livros que tinha indicado, pois sempre que o encontrava, ele estava lendo outros. Contudo ele se mostrou um excelente aprendiz. Devorou todos os livros que eu lhe apresentei e me parece, pelas questões que fiz a ele, que conseguiu absorver muito proveitosamente seus conhecimentos.

 Talannor deu um sorriso quebrado quando terminou de me ouvir e fiquei ali parado, sem saber o que fazer diante da confissão da minha arrogância e idiotice. Foi quando suas palavras me alcançaram, que meu corpo travou em choque. 

— Alanno, você é um excelente aluno — ele afirmou, categórico. — Este rapaz, se o que diz for verdade, terá um excelente futuro na Academia. Você será um bom tutor para ele e talvez uma amizade nasça disso. — Ele apontou para mim, como se indicasse uma coisa óbvia. — Ser um mago não é só sobre os conhecimentos que adquirimos, mas também as relações que temos com a vida à nossa volta. Se solte um pouco mais, rapaz, viva um pouco mais como alguém da sua idade.

 Eu não conseguia acreditar no que eu tinha ouvido. Esperava uma advertência e até mesmo uma suspensão, qualquer tipo de punição seria menos surpreendente do que um elogio, ainda mais um elogio seguido por um conselho. Seria possível que eu estivesse me contendo demais? 

 Não, não podia ser. Eu me dedicava mais que os outros, era isso. Diferente dos outros alunos que usavam as folgas para se embebedar nas tabernas, eu estava usando meu tempo de forma mais sábia. É isso que um verdadeiro mago faz, ele usa seu tempo de forma sábia. Assim eu iria conseguir superar todos eles, tornar-me um mestre em todas as cores e conseguir meu título de mago branco.

 Eu agradeci ao mestre Talannor pelas palavras e me retirei da sua sala com uma mesura. Minha mente ribombava com as palavras dele e focar no trabalho foi ainda mais difícil, como se só o cansaço da noite mal dormida não fosse o suficiente. Mas a nuvem negra de melancolia que pairava ao meu redor se desfez. Eu me sentia ainda confuso, mas melhor. 

 Saí do trabalho mais cedo, alegando estar me sentindo mal e pedi para que um dos meus colegas me substituísse na organização dos livros àquela tarde. Nos dormitórios, lavei-me na sala de banhos e levei bem mais tempo do que normalmente demoraria. Minha mente perambulava entre as palavras do mestre Talannor e minha resolução de dedicação extrema aos estudos. 

 Resolvi não dormir de barriga vazia, e mesmo sem fome, fiz uma visita ao refeitório. Comi sem sentir qualquer gosto na comida, forçando ela goela abaixo. 

 Tinha levado um livro da biblioteca para ler aquela noite, A batalha do Arquipélago de Assassizy. Relatava a batalha brutal dos Avianos contra os Tritões e como os Avianos foram importantes para que os humanos conseguissem tomar o controle das ilhas. Uma batalha brutal era tudo que eu precisava pôr na mente, para ocupar ela da minha própria batalha interna.

 Mal consegui ler um capítulo da recontagem da batalha e meu corpo e mente cobraram seu preço pela noite mal dormida. Para meu contentamento, tive uma noite sem sonhos e acordei junto do nascer do sol. Estava me sentindo descansado e acreditava que aquele dia seria radiante. 

 Na cama ao lado da minha, Dottes dormia profundamente. Ele era meu colega de quarto, contudo mal trocávamos cumprimentos. Ele sempre chegava tarde da noite e saía em horários aleatórios pela tarde. A única vantagem de tê-lo como colega de quarto era que era extremamente silencioso e eu nunca o escutava saindo ou entrando. 

 Naquela manhã teria aula na arena e resolvi aproveitar meu despertar prematuro para esticar as pernas e tomar um pouco de sol. Peguei meu cajado, o livro que eu precisava devolver para a biblioteca e mais alguns itens importantes e saí do quarto, pronto para começar o dia.

 O cajado era uma preciosidade, feito em madeira de mogno, com um belo tom de castanho claro. Na ponta, uma presilha de três pontas em prata, segurava uma pequena turmalina azul-clara. Eu gostava bastante da escolha que fiz ao adquiri-lo. Os detalhes da presilha sempre me faziam perder alguns minutos, contemplando o trabalho muito bem feito do ourives que a construiu.

 Passei no refeitório para pegar um pouco de comida para o desjejum. Era muito cedo e ainda não tinha nada pronto. Peguei alguns biscoitos que tinham sobrado do dia anterior e resolvi caminhar enquanto comia.

 Caminhei pelos jardins que ficavam em frente ao dormitório. As petúnias explodiam nas mais diversas cores, alguns tons chegavam a ser impossíveis de se discernir em meio à tamanha variação. Os jardins eram cuidados pelos próprios alunos da Academia. Os alunos que estudavam as disciplinas da segunda classe de magia verde faziam experiências com as flores para criarem os variados tons. O trabalho deles era impressionante, a variação de cores e a vivacidade das plantas, que exigiam climas quentes e grande quantidade de água, eram surreais. 

 O calor do sol fez-me sentir ainda melhor; parei em frente a uma das fontes, no centro do jardim. Uma opulenta estátua ficava bem no meio dela. Nela, a escultura dos três deuses da criação estava esculpida em detalhes resplandecentes. Um palanque, em mármore branco, mostrava o mapa do continente. Cada deus estava debruçado em uma das bordas do continente. 

 Flaazos, o Deus Sol, o dragão dourado, era representado por uma escultura de ouro. Algum tipo de encantamento tinha sido feito nas escamas douradas do dragão para deixá-las brilhantes e reflexivas — era possível ver um arco-íris formando-se ao redor dele, dependendo do ângulo que se olhava.

 Ruukam, o Sangue de Fogo, era parecido com Flaazos no seu aspecto dragônico, porém a diferença era notória; enquanto Flaazos tinha quatro patas independentes e as asas gigantescas, abertas em puro resplendor, Ruukam tinha as asas entrelaçadas às patas dianteiras de uma forma intrincada. Forjado em aço, Ruukam tinha um aspecto feroz e as gemas vermelhas, no lugar dos olhos, davam vida à escultura.

 Por fim, a escultura de Caeelumem, A Serpente do Infinito, não devia nada às outras duas. Esculpida em jade azul-safira, de um tom impossível, as escamas eram partes únicas de um todo. O longo corpo vinha em espiral do fundo da fonte, serpenteando a base de mármore até despontar em uma cabeça de serpente toda escamada e com olhos cristalinos, que também carregavam um brilho favorecido por um tipo de encantamento. 

 Fiquei ali saboreando o sol e deleitando meus olhos com aquela visão da mais bela arte. Minha mente ponderava sobre minhas incertezas e meus sonhos. Pensei na minha dignidade e quando que me tornaria um mestre e como tudo seria melhor nesse dia. Teria um lugar para viver com reconhecimento dentro do campus, os alunos me exaltariam e me procurariam para beber dos conhecimentos que eu tinha levado anos para conseguir. 

 Decidi que as palavras do mestre Talannor foram de boa intenção, que como ele mesmo ficava horas perdido em seus livros e anotações, podia entender com plenitude o porquê das minhas privações. Talvez ele desejasse que eu não tivesse um futuro como o dele, mas eu almejava um futuro para mim que exigia muito estudo e dedicação, um futuro que nenhum aluno no campus desejava tanto quanto eu.

 Seguiria meus planos e minha dedicação ao meu sonho; começaria desde já me portando como um mestre, decidido e diligente. Não iria até Annanis, não! Ele que se tivesse algum interesse por mais conhecimento, que me buscasse e aceitasse, de bom grado, o que eu oferecesse para ele. 

 Saí resoluto dos jardins. Um norte tinha sido traçado em minha vida e com isso parti para minhas aulas na arena.

 

***

 

 Naquele dia, após minha resolução, dediquei-me às aulas com um novo ar. Sentia uma confiança renovada dentro de mim e nem a possibilidade de meu pai vir me buscar abalava meu foco.

 Completei a aula na arena com esmero e meus treinos com as linhas de mana amarela estavam afinados. Saí da aula satisfeito e quando mais tarde fui assumir minhas atividades na biblioteca, nem os “gracejos” de Dazze me afetaram.

 Annanis continuava passando grandes quantidades de tempo na biblioteca, do início ao fim do dia, o que não me surpreendeu muito. Não fiz qualquer tentativa de encontrar-me com ele e as únicas notícias que tinha a seu respeito vinham das maledicências dos meus colegas, falando sobre como ele tinha adquirido um amor particular por livros de histórias e de batalhas épicas tal qual eu mesmo gostava. 

 Trabalhei com afinco e com o amor que o cheiro da tinta e a textura do papel exerciam dentro de mim. Aquele era meu mundo e eu pretendia ser o mestre dele. Passei boa parte do dia trabalhando nos registros e quando o fim do expediente chegou, era hora de trabalhar na organização dos livros e estantes. 

 Cumpri minha função sem passar por perto das áreas onde pudesse encontrar com Annanis. Não queria que ele pensasse que eu o estava espionando ou quisesse fornecer qualquer ajuda não solicitada. Se ele quisesse ajuda, que viesse me pedir.

 Ao término das minhas atividades, felizmente sem sinal de Annanis, recolhi minhas coisas e fui em direção à porta, quando escuto a voz dele, com aquele sotaque arranhado, chamando meu nome exasperado, como se eu fosse fugir dele novamente.

 Virei-me, vagarosamente, ouvindo seus passos corridos vindos em minha direção. 

— Alanno, como vai? Não te vi ontem — ele disse esbaforido, recuperando o fôlego da curta corrida. 

— Tudo bem, Annanis, como posso te ajudar? — Minha voz era seca, desprovida de qualquer sentimento. 

Ele me olhou estranho como se não me reconhecesse. Sim, agora eu era outro Alanno. “Mestre Alanno!” E me portaria como um mestre e ele deveria se portar como meu discípulo e aluno.

— Bem… — Ele começou, dúvida pairava em seu olhar. — Ele deu uma leve sacudida de cabeça e continuou. — Gostaria de comer alguma coisa comigo? Estou faminto, não como nada desde esta manhã.

 Ponderei sobre a pergunta dele, arqueei a sobrancelha. 

— Do que se trata? — Perguntei, sem pudor. Eu seria um mestre e um mestre não se sentava à mesa para comer junto a um mero aprendiz. 

 Ele me encarou mais uma vez com estranheza no olhar, mas continuou. 

— Estive lendo sobre história e sobre algumas batalhas e, bem, tive um pouco de dúvidas, na verdade um bocado delas… — Ele parou de falar por um momento e uma sombra obscura pairou sobre seu olhar, quando disse: — Perguntei a um de seus colegas na biblioteca e ele disse que não sabia nada sobre o assunto, que talvez eu devesse perguntar para você, pois era um assunto que você gostava de ler — ele disse e senti que aquele olhar sombrio escondia as verdadeiras palavras do que este meu “colega” disse para ele.

 Concordei com o convite dele e considerei aquele um convite digno de um aluno buscando favores com o seu mestre. Ele me perguntou se eu não tinha problemas em comermos no refeitório onde ele estava ficando e eu respondi que não haveria.

 A comida no refeitório dos bolsistas era basicamente um grude para encher a barriga. Enquanto no refeitório mais luxuoso, cozinheiros de verdade trabalhavam, no dos bolsistas os próprios alunos se candidatavam para trabalhar nas cozinhas. Além do mais, eu não queria ser visto com ele sentado na mesa do meu próprio refeitório. 

 Caminhamos em direção ao dormitório e Annanis ia contando sobre os livros que andava lendo e falando do tanto que tinha lido sobre as raças derivadas.

 Por algum motivo, ele achava um disparate os Elfos serem descritos como criaturas das sombras e terem aparência repugnante, com olhos assustadores, dentes pontudos e narizes, que segundo ele, eram exageradamente grandes para os rostos, enquanto os Orcs tinham corpos esbeltos e vigorosos, peles rubras de tom encantador, olhos expressivos, narizes maciços e cabelos negros e brilhosos. 

 Não era como se os livros estivessem mentindo, essa era a realidade e os livros só a retratavam. Perguntei-me se ele já tinha visto algum orc na vida e como ele iria reconsiderar esse endeusamento à beleza dos orcs se soubesse o quanto eles são uma raça insociável e com valores sem sentido. Isso também me fez pensar se ele realmente vinha de alguma província do leste, onde os orcs viviam em maior quantidade, sobre como o sotaque dele era peculiar e como eu queria saber de onde ele vinha. 

 Nossa caminhada nos fez andar um bom percurso; passamos pelas pontes de pedra cinza e polida que serviam de passagem pelo rio. Passamos pela estrada da feira, que dava acesso ao campus e entramos na estrada, que cortava o bosque até o dormitório.

 Durante todo o percurso ele ia falando sobre as raças e como tinha achado interessante o sistema tribal no qual os orcs viviam — onde as mulheres eram donas das vilas e os homens eram apenas guerreiros e não ditavam sobre a posse das terras. 

 Eu não adicionei muito ao assunto, apenas dizendo que achava pouco provável que todas as informações sociais fossem verdadeiras, pois era raro um ser humano viver em meio aos orcs e os livros dos quais ele tinha retirado aquelas informações tinham sido escritos há mais de 300 anos. E achava improvável que numa raça guerreira como os orcs, as mulheres, que eram fisicamente mais fracas, detivessem o controle das terras.

 Annanis me encarou estupefato. 

— Eu não duvido de que uma sociedade assim exista; faz muito sentido uma raça guerreira deixar as mulheres no comando. Mulheres são muito mais fortes que homens de tal modo que nenhum de nós pode compreender.

 Ele disse tais palavras com uma profundidade filosófica e eu estava prestes a responder quando um sujeito atarracado de braços largos e rosto bronco lhe cumprimentou.

— Annanis! Voltou cedo hoje? — Já estávamos às portas do dormitório e o sujeito vinha lá de dentro. Parou para deixar a porta aberta para que entrássemos.

 As portas do dormitório eram duas grandes pranchas de madeira esculpidas com vinhas e flores desabrochando. Estava conservada, embora apresentasse muita idade. O vão da porta era gigantesco, dando para até seis pessoas passarem lado a lado. Uma alavanca mantinha as portas sempre fechadas e um mecanismo suportava boa parte do peso, fazendo a porta ser bem simples de abrir ou fechar, apesar do tamanho e peso.

 Paramos no vão de entrada. 

— Garrand! Como vai? — Annanis o cumprimentou com entusiasmo e fez uma leve mesura. 

— Este é Alanno, de quem eu comentei que estava me ajudando — ele disse. Garrand me encarou com uma expressão curiosa, fez uma leve mesura e eu o cumprimentei de volta. 

— Entendo — ele disse, em voz seca e contínua. — Hoje descerei até Doxxima, vou encontrar com uns amigos. Gostaria de vir se encontrar conosco mais tarde? — indagou, em tom mais animado, seu convite era sincero. 

— Sabe que não posso, ainda tenho muito que estudar — Annanis disse em tom divertido e deu um de seus sorrisos afetados. 

— Certo, certo. Então, após as provas, vamos ter que tomar umas para compensar todo o tempo perdido. — Garrand apontava para ele com um dedo em tom acusatório, aquele não devia ser o primeiro convite que ele tinha feito e ele tinha uma cara de quem não aceitaria não como resposta.

 Annanis riu jocoso da postura de Garrand e garantiu que seria uma promessa que ele ficaria feliz em realizar. Os dois trocaram mais alguns gracejos e eu me senti excluído daquela conversa. Mantive-me firme, eu era um mestre e não um colega, não tinha por que sentir-me excluído — “quando nenhum deles estava no meu nível”, pensei. 

— Vamos andando, Alanno? — Em meio aos meus pensamentos, eu não tinha percebido que Annanis e Garrand tinham se despedido. 

— Eu estou faminto! — Annanis disse, acertando suas ideias de para onde. Dei um aceno de cabeça e indiquei que ele podia ir na frente. 

 O refeitório era simples e usual como tudo naquele dormitório. As mesas de madeira polida e os largos bancos tinham propósitos claros e nenhum enfeite ou adorno gracejava qualquer parte da superfície. Aquele horário deveria ser o de maior movimento, mas poucos alunos estavam comendo ali, apenas pequenos grupos de três ou quatro alunos se juntavam em algum canto do salão absortos em algum assunto e nem deram atenção à nossa entrada. 

 Na parede que dividia a cozinha do refeitório existia uma enorme janela e Annanis tinha enfiado a cabeça dentro dela para espreitar o outro lado. 

— Ah, Teissa! É você aí hoje. — Eu ouvia o som abafado da voz de Annanis ao cumprimentá-la, com admiração. 

— Como vai, garoto, quantos pratos vai comer hoje? — uma voz masculina ecoou pela parede. 

— Somente o suficiente para encher a barriga, Frazzo — respondeu Annanis.

 Risadas cúmplices vinham de dentro da cozinha. 

— Teissa, o que preparou de espetacular hoje? — Annanis bajulava a moça que respondeu com uma voz fina. 

— Preparei tortas de carne. — Ele tirou a cabeça de dentro da janela e perguntou se eu queria torta de carne. Disse que aceitaria com um aceno de cabeça e ele retornou a cabeça para dentro da janela. 

— Vou querer dois pratos, por favor. Um para mim e um para o meu amigo. — A palavra “amigo” dita por ele me incomodou mil vezes mais que o seu sotaque. De dentro da cozinha, a voz masculina falou em puro tom de gozação. 

— Veja só, Teissa, agora até amigos imaginários ele está inventando só para comer mais.

 Os três riram por mais um tempo, trocando anedotas e eu comecei a ficar incomodado. Estava pensando em virar as costas e ir embora, mas esperei tempo demais e dois pratos de torta fumegando foram colocados na janela.

 O aroma arrebatador empesteou o ar e meu estômago reclamou baixinho comigo mesmo. Não era nem de perto a gororoba sem gosto que eu tinha comido durante minhas primeiras semanas naquele mesmo refeitório. Decidi que aquilo era só fome e que eu não comia há algumas horas, provavelmente a comida não devia ser nada demais.

 Nos sentamos em uma mesa no canto do salão onde não havia ninguém por perto. Não era difícil achar um lugar reservado ali, a pouca quantidade de alunos fazia do refeitório um imenso espaço de mesas vazias. 

 Annanis trazia uma jarra de água e dois copos para nós; ele serviu nossos copos, mas imediatamente após colocar a jarra de volta na mesa começou a atacar a torta furiosamente. 

 Ele já estava na metade do primeiro dos três pedaços de tortas, destrinchando-a mortalmente, quando eu resolvi, enfim, prová-la. O sabor era magnífico, o recheio não era exagerado, igual às tortas que eu comia no meu refeitório, mas a carne estava divinamente temperada e a massa a encobria com carinho, dando a cada mordida uma descoberta nova de sabores. 

 Assim que terminei o primeiro pedaço, Annanis já estava na metade do seu terceiro e último. Ele parou por um momento e deixou o garfo descansar na lateral do prato. Bebeu vários goles de água, abaixou o copo e disse: 

— Bem melhor. Estava quase desmaiando de fome.

 Eu imitei o gesto, deixei meu garfo descansando na lateral do prato, peguei meu copo e tomei um gole leve de água para limpar a garganta. Já estava prestes a questionar do que aquilo tudo se tratava, pois mais aparentava que ele queria se destacar na Academia, passeando com um mestre ao seu lado, do que verdadeiramente tirar dúvidas comigo. 

— Estava procurando um livro de história que me mostrasse um pouco do passado dessa Era e como as fronteiras dos reinos atuais tinham sido formadas — ele começou sem rodeios e eu escutei com atenção. — Perguntei a um dos alunos que trabalhava na biblioteca qual livro de história eu poderia ler. Ele me indicou A Batalha das Planícies de Bassalis. — Não era totalmente errado dizer que A Batalha das Planícies de Bassalis teve grande influência nas fronteiras dos reinos atuais. Muitas batalhas foram travadas e muitas fronteiras mudaram, essa foi a última grande batalha e aconteceu há mais de 300 anos. Quem quer que tenha indicado esse livro para ele o fez com boas intenções. 

— Fiquei surpreso em como uma batalha há mais de 300 anos afetou tanto e mobilizou tantas raças contra uma única raça. Mas os motivos não me pareceram claros — ele disse, tentando clarear a mente, enquanto coçava a cabeça como se tentasse fazer a informação surgir na superfície da mente. 

— Bem, na verdade, isso depende — eu comecei a falar. Ele parou de coçar a cabeça me escutando avidamente. — Autores diferentes teorizam motivos diferentes. Não sei qual autor você leu, mas os motivos variam de raça para raça. O fato é que, a cidade forte Aggazissol era impenetrável, ou ao menos nunca tinha sido derrubada antes dessa batalha. Os Avianos eram a raça mais poderosa em toda Axxivvares, região central do continente, e já se estendiam para fora das grandes fronteiras ao sul e ao norte. 

— Os Goblins disputavam as montanhas com os Avianos e tinham ressentimentos pela falta de ajuda no que foi conhecido como o Colapso de Azzarros. — Annanis me olhou estranho em relação ao nome que eu tinha acabado de falar e percebendo sua confusão, expliquei. — Foi uma cidade antiga dos Goblins que tombou para a ruína. Leia depois a respeito, é uma história bem mais antiga. — Dada a explicação, continuei. — Os Orcs tinham interesse nas planícies e por uma forma de cruzar o continente para o oeste. 

— Os reinos humanos próximos também tinham interesse nas planícies aráveis, que eram território dos Avianos, mas nenhum deles tinha poder para “bater de frente” com os Avianos. Foi o general Hillennor quem uniu as três raças, Goblins, Orcs e Elfos junto aos humanos, formando a aliança dos quatro, que garantiria poder militar suficiente contra os Avianos. — Eu parei um pouco para beber mais um gole de água, minha garganta estava seca.

 Annanis absorvia as informações com o rosto reflexivo. Um braço cruzado sobre o peito, apoiando o outro que levava sua mão ao queixo, e o colocava numa postura pensativa. 

— Mas os Elfos não tinham qualquer motivo para se envolver na guerra. — Ele me apontou com um sorriso maroto, achando que tinha achado algum furo na minha história.

— Bom, de fato não se sabe muito sobre o que levou os Elfos à guerra. O que muitos historiadores dizem é que o general Hillannor os convenceu de que um dos seis tesouros estava sendo escondido na cidade e que os Avianos pretendiam corrompê-lo. — Na menção dos seis tesouros, ergui uma sobrancelha, esperando que Annanis fizesse alguma pergunta.

— Não precisa explicar — ele respondeu astuto, levantando e sacudindo uma das mãos, dispensando minhas explicações. — Li algo a respeito. Os seis tesouros dados pelos deuses e distribuídos entre os Avianos, Orcs, Tritões, Elfos, Goblins e Fadas — ele foi falando, enquanto enumerava, com as mãos, seis das sete raças derivadas. 

— Eu entendi essa parte, pretendo ler mais sobre as relíquias para entender sobre o envolvimento dos elfos. Mas, quanto aos reinos costeiros... Por que durante a guerra eles se juntaram e atacaram os reinos que estavam em guerra contra os Avianos?

 As dúvidas de Annanis despertaram um fogo dentro de mim, era um prazer enorme debater histórias de guerra e eu já tinha dedicado inúmeras horas, lendo e relendo muitos daqueles livros e várias versões das mesmas batalhas. 

— Para entender sobre isso seria melhor que você pegasse para ler sobre A batalha do Arquipélago de Assassizy. Em resumo, os reinos costeiros tinham uma forte aliança com os Avianos contra os Tritões. Durante a guerra, eles tentaram apoiar os Avianos, mas não chegaram a existir conflitos entres os reinos costeiros e a aliança dos quatro, pois os exércitos dos reinos costeiros nunca chegaram a sair propriamente das costas, temendo um ataque dos Tritões.

 Annanis assentiu com a cabeça e falou para si mesmo em voz alta. — Tanto para ler e tão pouco tempo. Seria bom se conseguisse pegar os livros da biblioteca emprestados — retrucou. De fato, ele não conseguiria. Apenas os alunos podiam retirar os livros de dentro da biblioteca.

— Bom, você não pode, mas eu posso. Sempre que precisar de um livro, me avise e eu retiro para você — eu disse em tom amistoso. Ele me deu aquele sorriso afetado e mesmo tentando a minha pretensão, em manter uma postura de mestre, ia desmoronando.

 Continuamos conversando mais pausadamente, enquanto terminávamos de comer nossos pratos. Annanis fez questão de nos servir mais um pedaço de torta e comíamos falando de vários tópicos sobre as batalhas e os usos das táticas da aliança para sobrepujar as defesas de Aggazissol.

 Eu não percebi as horas passarem e nem em como nossa conversa foi ficando cada vez mais deleitosa. Ríamos de conceitos estranhos empregados nas batalhas e em como decisões estúpidas arruinaram postos de defesa. 

 Contei um pouco sobre outras batalhas que tinha lido e ele me escutava com deleite e concentração. Ele me falava das suas especulações sobre as razões das tomadas de decisões e dessa vez, era eu quem reconsiderava meu ponto de vista, vendo as coisas por outros ângulos. 

 A comida tinha um sabor diferente ali, até a água tinha um gosto mais doce. A conversa era de um prazer honesto. Sentia-me solto para falar o que bem pensava e Annanis me escutava e respondia, amigavelmente. 

 Os alunos já tinham deixado o refeitório há muito tempo, buscando o conforto de suas camas. As luzes da cozinha já tinham sido apagadas e ninguém veio perturbar nossa conversa. 

 Já não tinha ideia do quão tarde era, quando Annanis se levantou, esticando as costas e se espreguiçando. 

— É muito bom conversar com você, amigo, mas gostaria de ir dormir um pouco. Pretendo ser um dos primeiros na biblioteca amanhã. 

 Ele estendeu a mão para me cumprimentar e foi quando eu percebi. Como eu podia ser tão idiota, achando que aquela era uma relação de mestre e aprendiz? Talvez realmente fosse, mas o aprendiz era, na verdade, eu e não Annanis. E o que ele estava me ensinando era algo que eu tinha esquecido, dentro da Academia, durante todos aqueles anos. 

 O prazer de ter alguém para dividir ideias, conversar sem ter medo do que o outro vai pensar sobre você. O sentimento de conexão que duas pessoas sentem ao conversar por horas, acreditando que apenas alguns minutos tinham se passado. 

 Um sentimento de amizade despertou dentro de mim. Eu não conseguia lembrar da última vez que havia sentido aquilo. Lembrei da amizade que tinha com meu irmão, mas não era igual ao que sentia naquele momento. Nada se igualava àquilo. No meu exílio em busca de conhecimento, tinha esquecido como as conexões com as outras pessoas eram prazerosas. 

 Os conselhos do mestre Talannor vieram à minha mente e eu apertei a mão dele firme e sorri de volta. 

— Teremos um longo dia pela frente amanhã, amigo. — Annanis rachou o sorriso ainda mais, naquela cara achatada. 

— Fico feliz que não me enganei sobre você. — As palavras dele foram como um tapa e não tive palavras para responder quando ele completou: — Fico feliz em ver que você não é um daqueles esnobes que se medem pelos títulos de suas famílias, nem pelo ouro nos seus bolsos — concluiu.

 

Capítulo II

 A Acolhedora 

 

 Lembro-me que o inverno tinha sido surpreendentemente tranquilo naquele ano. Talvez Caeelumem tenha escutado minhas preces, pois só ele sabe o quanto eu rezava naquela época, ou talvez os deuses trabalhassem para que pessoas certas se encontrassem nos momentos certos. Tudo que eu sabia, quando deixei as favelas em que morava, era que precisávamos de um inverno tranquilo para que meu pai conseguisse economizar dinheiro suficiente para eu partir. Trabalhei arduamente ao lado dele em tantas marés que minhas mãos finas ganharam calos em cima de calos. Não trabalhei menos que nenhum homem naquele porto e só os deuses sabem como foi difícil para mim.

 Ainda mais difícil foi a partida. Minha mãe chorava, resignada em perder uma das filhas. Das minhas irmãs, tive apenas a piedade resoluta de que tudo aquilo era apenas o meu desejo. Junto a uma compreensão de que era provável que eu nunca voltasse e que, talvez, fosse melhor para todos — afinal, era uma boca a menos para alimentar.

 Melizza, minha irmã mais velha, veio se despedir com Subilla no colo. Sua filha era linda e tinha as características do falecido pai. Desaparecido durante uma tempestade, uma fatalidade comum entre os que levavam a vida no mar, Letto deixou-a viúva e com uma filha para criar.

 Lassana, minha segunda irmã, nunca teve a sorte de encontrar um marido. Trabalhava no mercado junto de nossa mãe, vendendo o pouco de peixes e mariscos que conseguíamos. Trabalhava muito bem nas costuras das redes e tinha boa mão para artesanato. Suas mãos eram o que garantia o pouco de dinheiro na casa, quando o mar não nos trazia nada.

 Dattina, minha terceira irmã, era mais velha que eu apenas um ano. Ainda sonhava com um príncipe que a viesse buscar e a torná-la uma princesa. Eu acreditava que cedo ou tarde ela daria conta de nossa realidade, de que apenas princesas eram salvas por homens nos contos de cordel. 

 No colo de minha mãe jazia a graça dos deuses. A pequena Azulla, com apenas quatro anos, jovem demais para entender a realidade de nossa família. Uma benção dos deuses, que possibilitou a vida da pequenina nos ventres de nossa mãe, mesmo depois de tantos anos achando que não traria mais nenhuma criança ao mundo. 

 Meu pai era um homem forte e vigoroso, trabalhou muitos anos como marujo e nos contava diversas histórias sobre suas viagens às ilhas ao sul. Contava-nos como abandonou tudo para ficar com nossa mãe e como sua paixão por ela era o farol que iluminava seu caminho de volta para casa todas as noites.

 Os anos não estavam sendo gentis com ele. A cada dia ele demorava mais para levantar-se da cama. Tornava-se para ele mais difícil levantar as redes; remar cansava-o cada vez mais rápido e os cabelos grisalhos se amontoavam em tufos na cabeça. 

 Sua grande força vinha da habilidade em manipular as linhas de mana azul. Fraco demais para ser escolhido como um mago, mas forte o suficiente para se tornar um marujo. Sua força e exemplo era a verdadeira herança que eu levava comigo. O dom que herdei de meu pai eram sua força e magnitude.

 Por três anos, eu rezei a cada inverno para que não precisássemos gastar todo o nosso dinheiro para nos manter vivos; que uma chuva tempestuosa não derrubasse nossos telhados; que a febre não nos obrigasse a ficar em casa e tivéssemos que comprar por comida e medicamentos. Tudo que eu pedia era que os deuses me dessem uma oportunidade de, ao menos, tentar. 

 Quando aquele inverno finalmente chegou ao fim, e com ele a hora da partida, meu pai entregou-me todas as nossas economias daquele último ano, com um sorriso melancólico. Seu abraço foi como cair em um espinhal e o aperto como anzóis cravados nas entranhas. 

 Quando ele falava da Academia, seu único conselho era de que se tudo desse errado, para eu nunca abaixar a cabeça; para não deixar que aqueles vermes se achassem superiores só porque eles tinham um pouquinho a mais de talento. 

 No momento em que seus braços entenderam que não podiam mais me segurar, ele me soltou e me olhou nos olhos. Determinação e pesar era tudo que se refletia de seus olhos. Aquele momento e tudo o que eu vivi naquele lugar, eu levei comigo. Seriam minha força e minha resolução por toda a vida!

 Minha viagem foi junto a de uma caravana que partia de Carrattenna para Doxxima. A caravana levava mercadorias de todos os tipos, com o objetivo de vender e trocar produtos à medida que subiam do litoral para o norte. 

 Dorcrutte era o dono da caravana e fazia essa viagem todos os anos para adquirir itens mágicos na Academia e revendê-los por preços exorbitantes nas terras ao sul. Diversos jovens se alistavam para trabalhar na caravana pela passagem até Doxxima.

 Meu pai cobrou alguns favores para conseguir uma oportunidade de trabalho para mim. Eu teria trabalhado, de bom grado, se Dorcrutte não fosse um sujeito tão desprezível. 

 Ele sabia que os jovens que solicitavam emprego, em troca de passagem até Doxxima, eram “botas finas”, sem dinheiro suficiente para comprar um par novo de calçados, quem dirá ter um peso nos bolsos para bancar uma viagem por eles mesmos. 

 Abusava de nós, fazendo-nos trabalhar carregando caixas pesadas e empurrando carroças empanturradas de mercadorias, quando os cavalos não aguentavam mais subir um morro sozinhos. Negava uma alimentação decente e nos dava sobras de comida dos trabalhadores contratados da caravana. Os xingamentos e as ameaças contínuas de Dorcrutte, de que se não trabalhássemos direito e sem preguiça ele nos deixaria para trás, já que não precisava de ajudantes “imprestáveis” e que não valiam a comida que ele nos dava para comer, era outro tormento.

 Eu era a única mulher em um grupo de seis jovens que trabalhavam para pagar pela passagem até Doxxima. Não demorou muito para que o grupo diminuísse para cinco, quando, em uma noite, um dos rapazes se cansou da sopa rala que era servida como comida e os trabalhos pesados debaixo de insultos. Arremessou a sopa em Dorcrutte, amaldiçoando o homem de sangue sujo e abominação. 

 Dorcrutte foi categórico em dizer que não toleraria corpo mole por eu ser uma mulher e nisso, ao menos, ele não pode reclamar de mim. Eu trabalhava de igual para igual com os outros jovens, carregando caixas e empurrando as carroças pesadas de mercadoria quando a roda travava em um buraco ou em meio à lama. 

 O fato de eu ser mulher passou quase despercebido entre os membros da caravana. Havia outras mulheres que também estavam trabalhando e negociando mercadorias, embora não realizassem nenhum tipo de trabalho pesado como eu. 

 Os jovens que viajavam para Doxxima, junto comigo, no início ficaram alarmados com a presença de uma mulher entre eles. Mas, logo que os trabalhos pesados vieram e eu comecei a trabalhar junto deles, esse receio inicial se desfez.

 Tudo que os garotos falavam era sobre a Academia. O quanto ela devia ser realmente magnífica, de acordo com os relatos que ouviam de outros que já haviam estado por lá. Durante as noites, quando parávamos para comer e descansar, cada um contava uma história diferente que tinha ouvido de um amigo de um amigo ou de um primo que tinha um amigo que jurava ter estado lá.

 Meu pai havia estado lá e tinha me contado diversas estórias sobre o imenso campus da Academia. Os jardins magníficos, as estátuas que eram obras de arte vivas e os edifícios com vitrais estonteantes. Dividir essas informações com todos foi um choque para muitos deles.

 O quanto cada um queria se tornar um mago e mudar seu destino era evidente nos desejos ardentes das conversas à noite em torno da fogueira. Ser representante das famílias nobres, trabalhar como embaixador da academia ou servir como guarda em uma cidade de renome, eram desejos que todos aspiravam realizar.

 Eu, particularmente, ansiava pela oportunidade de trabalhar para as casas nobres de Carrattenna. Poderia viver perto da minha família e ajudá-la a sair da miséria em que vivia. 

 Era quase certo que um mago talentoso não era desperdiçado e acabava servindo à alguma família de nobres. Seus serviços eram sempre muito bem valorizados nas artes de poções, encantamentos e runas. 

 Quando o mago não possuía nenhuma aptidão para artes de criação, a guarda magiciana sempre era um caminho possível, já que sempre existia interesse em contratar magos poderosos para manter a ordem dentro das cidades. O exército era cheio de magos com níveis de poder variados.

 Nenhum de nós tentou fazer algum tipo de amizade. Todos sabiam que eram difíceis as chances de passar na Academia e que cada um de nós era concorrente um do outro.

 Mesmo sabendo que seríamos inimigos na luta pela oportunidade de nos tornar um mago na Academia, acabávamos conversando um pouco sobre nossas habilidades e um pouco sobre nosso passado. 

 Foi uma surpresa descobrir que todos eram mais novos que eu. Os dias longos de trabalho e a pouca comida não nos dava energia para qualquer tipo de aproximação maior que a conversa que dividíamos em torno da fogueira à noite enquanto comíamos. Quando as barrigas se contentavam com a pouca comida ruim que recebíamos, a única opção que buscávamos em seguida era o descanso em nossas trouxas. 

 Ao chegar em Doxxima, a cidade mais próxima da Academia, fiquei decepcionada com a minúscula cidade — se comparada à imensa cidade portuária que era Carrattenna. Minha surpresa maior foi pelo número de pessoas tão distintas apinhadas nas ruas, que me lembrou muito de casa. Carrattenna era a maior cidade portuária de todo o continente. Pessoas vinham de todos os cantos para negociar mercadorias ou apenas para abastecer seus navios e continuar seus caminhos.

 Os anos tinham me ensinado a identificar as pessoas e as regiões de onde elas vinham apenas pelos traços característicos em seus rostos. Em Doxxima, indivíduos de todos os tipos se espremiam nas ruas. Jovens de pele escura, rostos angulares e com cabelos grossos, do leste do continente, misturavam-se aos de pele clara, rostos parrudos, dos narizes amassados do lado oeste. Até mesmo os rostos agudos do norte do continente com seus narizes achatados, que eram tão raros de se ver em Carrattenna, tão ao sul, apareciam com mais frequência ali. Os rostos tão familiares do lado sul, não negavam suas origens. Muitos eram marinheiros, pela cara corada de sol e o porte largo e musculoso que se adquire trabalhando em um convés ou nas docas. 

 Não precisava de muita observação para entender por que uma cidade tão pequena fervia de jovens, de tantos lugares diferentes do continente. As provas para a Academia aconteceriam dentro de três dias e todos ali aguardavam pela oportunidade de passar nos exames e se tornar um mago.

 Fiquei surpresa, pois, assim que chegamos, todos os rapazes desapareceram. A julgar pelos insultos jogados aos quatro ventos por Dorcrutte, recheados de reclamação pelos ajudantes “ingratos” desaparecerem antes de completarem suas tarefas, aquilo acontecia com certa frequência. 

 Arrependi-me de não ter feito o mesmo, pois o homem era inescrupuloso e me fez trabalhar, descarregando mercadorias como se eu tivesse de assumir o dever dos outros quatro, que tinham desaparecido. Trabalhei descarregando mercadorias em um dos armazéns locais até meus músculos não aguentarem mais. 

 Nesse dia, não consegui sair para explorar a cidade e tudo que fiz foi comer e dormir. Eu não tinha mais que ficar trabalhando sob aquelas condições, mas a cidade estava cheia e não iria encontrar nenhum lugar onde pudesse dormir com relativa segurança, sem gastar nada. E mesmo a comida sendo pouca e terrível, ela ainda forrava o estômago. Não tinha a menor dúvida de que, qualquer coisa que eu tentasse comprar para comer na rua, estaria custando muitas vezes mais caro do que o preço de costume. 

 No segundo dia, acordei bem cedo e decidi explorar a cidade. O volume de jovens chegando era cada vez maior e por um momento pensei, com um frio na barriga, em quantos deles voltariam para casa com seus sonhos dilacerados. Pior ainda, pensei, quantos deles, assim como eu, tinham vindo com planos apenas de ida.

 Eu não tinha ideia se as poucas moedas que minha família tinha conseguido economizar me garantiriam uma passagem de volta para Carrattenna. Se tudo desse errado, eu não tinha ideia se conseguiria voltar para casa. E mesmo que voltasse, o que me aguardaria lá? Um lugar sem futuro e uma vida miserável.

 Eu já sabia de tudo isso e mesmo assim decidi vir. Eu não pensaria no pior, ao menos não ainda. Como meu pai sempre dizia: “é se passando uma onda de cada vez que se passa da arrebentação”. Enfrentaria o que tivesse de enfrentar sem pensar no fracasso. Se fracassasse, lidaria com isso depois.

 As ruas principais de Doxxima eram largas e pavimentadas, propensas para o comércio. Se não fosse a quantidade de jovens se acotovelando por um lugar para passar, elas seriam ótimas para caminhar. 

 O comércio era intenso, com vendedores de comida gritando ofertas com tabuleiros de bolos e tortas em meio a olhares famintos. Outros comerciantes ofertavam seus produtos, anunciando das portas de seus estabelecimentos, também aos berros.

 Tentei escapar das ruas cheias e entrei em uma estalagem. O lugar estava repleto de gente e todas as mesas estavam ocupadas. Tinha adentrado dois ou três passos no local e resolvi que não ficaria — dei meia volta para sair, trombei com um homem alto que tinha entrado atrás de mim. O homem praguejou: 

— Maldição, garoto! Todo ano é isso, esses caipiras lotam a cidade e só fazem causar danos às propriedades privadas e atrapalhar o comércio — gritou ele. 

 O homem não tinha reparado em mim direito. Eu andava com os cabelos amarrados em uma trança e enrolados na parte de trás da cabeça para disfarçar meu sexo — era sempre mais seguro andar nas favelas parecendo um garoto do que uma menina. Quando seus olhos furiosos caíram em mim e ele percebeu que na verdade eu não era um garoto, fez uma careta desgostosa. 

 Ao varrer com o olhar o homenzarrão, reparei então porque ele ficou tão irritado: tinha derramado o conteúdo do copo dele todo em cima de suas vestimentas, o cheiro forte de vinho adentrou minhas narinas e não precisava ser muito sagaz para saber que o homem estava para lá de bêbado. Eu rapidamente me desviei dele quando ele tentou me agarrar e saí pela porta, correndo enquanto ele gritava e me amaldiçoava furioso atrás de mim.

 Não tinha reparado que corria sem rumo até virar em um beco que eu acreditava ser uma rua na esquina da estalagem. No beco, três figuras trocavam alguma coisa entre as mãos. Minha chegada os surpreendeu e a figura de capa marrom, escondida sob um capuz, deu um pulo que fez os outros dois garotos, que negociavam com ele,  assustarem-se.

 Os garotos agarraram um papel que estava na mão da figura de capa marrom e o puxaram. A figura de capa marrom não fez qualquer resistência e os deixou pegar o papel. Os dois garotos entreolharam-se e saíram correndo para a outra saída do beco. Na outra mão do sujeito de capa marrom, um saco tilintava enquanto ele o escondia por dentro da capa.

 Minha corrida assustada tinha me deixado sem ar e eu estava recuperando o fôlego, enquanto olhava para trás para ver se o homem bêbado, que eu tinha esbarrado, estava atrás de mim. A figura de marrom começou a se aproximar e eu não sabia se voltava para onde eu tinha vindo ou se passava correndo por ele, até ele falar: 

— Não se preocupe, eu tenho mais respostas de onde essas vieram. Eles vão passar, mas você também pode. Quem te enviou?

 Isso me assustou bem mais que o homem bêbado com quem eu havia trombado na estalagem. Eu vivia em uma cidade gigantesca em Carrattenna. Estava acostumada com bêbados e a cuidar-me para não me ver cercada por homens inescrupulosos. Mas se meus instintos estavam certos, aquela figura de marrom era algum tipo de mago e certamente estava oferecendo respostas para as provas.

 Meu pai tinha me alertado que alguns alunos da Academia tentavam enganar os novatos que iam para Mirrylhan, vendendo amuletos que eles diziam enganar os testes de poder. Ou que vendiam poções que aumentavam o conhecimento, temporariamente. Não esperava encontrar algum aluno vendendo supostas respostas para os testes.

 Assustada com a aproximação do mago de marrom, sacudi a cabeça em negação. 

— Não preciso, obrigada. — Voltei correndo pelo beco, de onde eu havia vindo. Corri mais uma vez em disparada e, dessa vez, fiz meu caminho com mais certeza. Corri em direção à caravana e só parei quando cheguei lá.

 A caravana estava estacionada ao lado do armazém onde eu tinha passado o dia anterior descarregando e ninguém chamou minha atenção quando eu passei correndo, entre as carroças e animais, para me esconder próximo a uma pilha de caixas e barris de água.

 Fiquei algum tempo ali assustada e pensando no quão pavoroso era aquele lugar. Estava acostumada aos perigos do mar, a enfrentar tempestades e ventos furiosos e nada disso me colocava medo. A cidade abarrotada e cheia de gente também não era grande coisa se comparada à Carrattenna, que era muitas vezes maior e mais apinhada de gente. 

 Senti a falta do meu pai... Ele estava ao meu lado para me guiar tantas vezes que agora parecia que estava perdida, em mar aberto. Aquilo tudo era tão estranho. Como eu poderia ter alguma chance de passar nas provas com tantos candidatos se eu mal sabia quais desafios me esperavam na Academia? Um desespero profundo ia me afogando pouco a pouco.

— Aí está você, garota! — chamou-me, de forma antipática, Dorcrutte, tirando-me do meu estado lúgubre. — Você sumiu toda a manhã; as caixas não vão se carregar sozinhas — ele reclamou comigo. Levantei-me, deixando minha mente sombria para trás o máximo que pude e foquei no trabalho desagradável, que tinha à frente. Mais uma vez decidi que não iria remoer essas emoções de derrota. Faria o meu melhor e arcaria com as consequências depois.

 Coloquei minha cabeça totalmente imersa no trabalho e tentei pensar o mínimo possível nas provas que enfrentaria na Academia e na minha família, em casa. Era difícil não pensar em meu pai enfrentando os longos dias de pesca sozinho e nas minhas irmãs, mas suportei bravamente a saudade de casa e o medo do que eu teria que enfrentar em seguida.

 A caravana de Dorcrutte estava juntando suas coisas e finalizando seus carregamentos e as últimas barganhas eram feitas em preparativo para o dia seguinte. Na manhã seguinte, nossa jornada finalmente nos levaria para a Academia. 

 

***

 

 O caminho para a Academia foi bem mais lento do que eu imaginava. As estradas, repletas de comerciantes e de jovens indo em direção à Academia, já era algo que eu esperava, mas a quantidade de gente era estonteante. As estradas estavam mais convolutas de pessoas do que as docas de Carrattenna em um dia cheio.

 A estrada sendo percorrida a pé levava pouco mais de duas horas de caminhada em situações normais. Contudo, por causa do grande número de pessoas tentando chegar ao mesmo lugar, simultaneamente, a caravana levou bem mais tempo que o normal para chegar até a estrada principal que dava acesso ao campus.

 A chegada ao campus foi extraordinária. Quando os prédios começaram a surgir no horizonte, fiquei perplexa pelo esplendor dos vitrais que mais se igualavam a faróis indicando o caminho, com suas figuras magníficas desenhadas nos vidros. Era ainda mais surpreendente do que meu pai tinha descrito. Estava ansiosa para ver os magníficos jardins e as flores mais belas do continente, como meu pai costumava dizer. 

 Ainda tinha que ajudar a caravana para cumprir com o pagamento da minha viagem e, embora a vontade de desaparecer e abandonar o serviço fosse tentadora, resolvi cumprir com minha parte do acordo, da melhor forma possível. Se tudo desse errado, poderia pedir serviço na caravana no caminho de volta para Carrattenna, mas para isso eu precisava estar sob os bons olhos do desprezível Dorcrutte.

 A estrada da feira, como os mercadores chamavam, era a estrada onde os mercadores montavam suas tendas e posicionavam suas carroças. No mesmo dia da seleção de novos alunos, acontecia a feira dos magos. Magos, muitos deles alunos, e mercadores montavam bancas para negociar bens e produtos.

 Era uma oportunidade única dos mercadores conseguirem barganhas por itens criados por alunos da Academia que precisavam de dinheiro. Poções, runas, pergaminhos e outros objetos mágicos eram vendidos ou negociados por roupas, calçados, joias e alimentos.

 Oficialmente, apenas alunos com selos de aprovação podiam negociar materiais mágicos com os comerciantes. Ao menos foi isso que ouvi dos mercadores da caravana. Mas, pelo que vi quando cheguei, ninguém se importava muito de cobrar ou mostrar qualquer tipo de documento na hora de fazer suas barganhas. 

 Alguns indivíduos de túnica branca andavam em meio aos de túnica marrom. Os indivíduos de túnica branca tinham amarrada à cintura uma corda colorida entrelaçada com as cores azul, vermelha e amarela. Pela postura dos de túnica marrom para com os de túnica branca, eles deveriam ser os mestres, enquanto os de túnica marrom, aprendizes de magos. 

 A feira era uma muvuca de carroças e comerciantes se digladiando para conseguir espaço nas laterais da estrada para montar suas barracas. Os mestres não deixavam que nenhum dos comerciantes ocupasse por muito tempo a parte central da estrada, e os aprendizes, que não estavam trabalhando, passeavam por entre as barracas já montadas.

 As melhores posições da feira, bem ao final da estrada, já estavam ocupadas com tendas dos próprios alunos do campus. Eles expunham pedras, pergaminhos e poções e eu não tinha a menor ideia do que faziam. 

 Depois de brigar com dois outros comerciantes, Dorcrutte conseguiu um espaço grande o suficiente para posicionar sua caravana. Ajudei a descarregar uma boa parte das mercadorias e o sol já estava quase anunciando o meio-dia quando Dorcrutte passou por mim, e ao me ver, arqueou as sobrancelhas em uma careta alarmada e imaginei que tinha feito algo errado.

— O que está fazendo, garota? — Eu me assustei com a pergunta e respondi abobada. 

— Descarregando. — Ele me olhou, incrédulo. 

— A seleção para novos alunos já deve começar, saia daqui. Você já pagou pela sua viagem. — Fiquei aturdida por aquele momento de gentileza, vindo de um homem tão mesquinho e avarento, que demorei para entender o que ele queria dizer.

 Larguei a caixa que estava carregando onde estava; corri para juntar as minhas coisas que estavam em uma das carroças. Saí correndo em direção aos enormes edifícios e não demorei muito para sair da estrada e me encontrar em um jardim amplamente florido, um oceano de flores das mais diversas cores que se perdiam em diversos canteiros. O aroma que elas deixavam no ar era doce e se misturava ao cheiro de suor das centenas de jovens que se reuniam no jardim, ocupando quase todo o espaço da praça. Perguntei a um dos jovens, que estava parado esperando algo, se ele sabia quando e onde seriam as provas. Ele me olhou cansado e disse que ainda não tinha sido anunciado. Quase na mesma hora uma comoção na praça chamou a minha atenção.

 Vários jovens estavam dando passagem e abrindo espaço para alguém que vinha caminhando do majestoso prédio à esquerda do jardim. O burburinho de vozes e gritos não me deixava entender o que estava acontecendo. Demorou um tempo até que eu pudesse ver que a figura que se aproximava, de túnica branca, era acompanhada por mais quatro outras de túnicas marrom. 

 No centro da praça havia uma fonte e no centro dela, havia três esculturas representando os três deuses. Da distância em que eu me encontrava, não era possível discernir os detalhes, mas algum tipo de luz irradiava delas. 

 O mago branco aproximou-se da beira da fonte e subiu na borda. Virou-se para a multidão e fez um gesto com as mãos e o ar em volta dele ondulou de forma sobrenatural. Vozes perplexas ecoavam na multidão, fazendo com que fosse impossível ouvir qualquer coisa que o mago branco na fonte tentasse dizer — até que a voz dele saiu como um trovão.

— Atenção, candidatos! — bradou o mago. O som de sua voz se propagou como uma onda explosiva, silenciando toda a multidão. Após alguns segundos, percebi que estava desnorteada, pois não tinha notado que apertava meus ouvidos com força e tinha fechado os olhos. 

 Ao abrir os olhos vi que alguns dos candidatos mais próximos à fonte estavam no chão e os aprendizes de capa marrom ajudando-os a se levantar. O mago branco fez mais alguns movimentos com as mãos e o ar em volta dele fez algumas ondulações e ele então voltou a falar. 

— Atenção, candidatos! — chamou a todos. Agora, sua voz se estendia por toda a multidão, mas não tinha a mesma força que a primeira onda.— As provas de seleção irão iniciar agora. Formem uma fila organizada em direção ao edifício de aulas, naquela direção. — Ele apontou para o prédio atrás dele, uma construção diferente de onde ele tinha vindo. 

 Momentos antes que o mago pudesse terminar de falar as últimas instruções, vários jovens começaram a correr para a entrada do edifício onde seriam feitas as provas. Outra comoção começou a se formar à medida que alguns dos jovens empurravam uns aos outros e lutavam para serem os primeiros da fila. 

 Os aprendizes de manto marrom começaram a entrar no meio da confusão. E tão logo começou, ela acabou assim que vários dos jovens, que estavam brigando, começaram a cair atordoados no chão, à medida que os aprendizes iam tocando neles. Os outros jovens que estavam por perto começaram a se afastar e dar espaço para que os aprendizes organizassem a fila. 

 Os aprendizes davam ordens para que uns saíssem e fossem para o final da fila e outros se posicionassem corretamente. Os alunos derrubados eram mandados para o final da fila com um aceno de desdém dos aprendizes, que sorriam contentes em usar suas habilidades neles. 

 Percebi que estava parada no meio da praça e não tinha corrido para me posicionar, quando me dei conta, uma enorme fila já tinha se formado e jovens vinham correndo de outras direções para se juntar a ela. 

 De volta à realidade, corri para pegar o meu lugar no final da fila; vi que um jovem vinha caminhando, vagarosamente, pela minha esquerda, bem mais à frente, com a cara afundada em um livro. Apertei o passo para que eu chegasse ao final da fila primeiro que ele. Se ele não tivesse parado e me dado passagem, provavelmente teríamos nos trombado. 

 Ele se juntou à fila atrás de mim e logo outros mais se juntaram atrás dele. Ele estava imerso lendo um livro e eu estava tentando recuperar meu fôlego. Decidi ignorar o garoto e prestei atenção na fila à minha frente. Dezenas de candidatos estavam à minha frente. Comecei a pensar se o meu atraso em tomar conhecimento da situação não tinha me custado minha oportunidade de ingressar na Academia. 

 Bem mais à frente, vi um rosto conhecido, era um dos garotos que viajou comigo na caravana, e se não estava enganada, o nome dele era Hazze. Ele era um dos primeiros na fila. Procurei algum rosto feminino e pude ver poucas mulheres. 

 Não encontrei nenhum dos outros rapazes que viajaram comigo e tentei imaginar o que havia sucedido com eles. Tentei não pensar em rejeição e em fracasso, mas minha mente corria em círculos e eu não tinha como ocupar meus pensamentos parada naquela fila, aguardando minha vez.

 Demorou um tempo até que os aprendizes de mago se sentissem satisfeitos com a condição da fila e abrissem as portas do edifício onde aconteceriam os testes. Três jovens foram convidados a entrar e eu me perguntei quanto tempo tudo aquilo demoraria. Cerca de poucos minutos depois, dois dos três jovens saíram pela porta. Estavam abatidos e com a feição de quem perdeu um bom barco na maré alta.

 Quando comecei a me perguntar o que tinha acontecido com o terceiro rapaz que tinha entrado, gritos começaram a vir de dentro do edifício e um murmúrio começou a percorrer a fila, como um calafrio que vem subindo a espinha quando nos assustamos com algo. 

— Não! Eu consigo mais, me soltem, me deixem tentar, eu consigo, eu juro que consigo! — gritava o terceiro garoto, carregado por dois dos aprendizes, enquanto ele, plácido, era arrastado pelos braços, gritando e chorando, descontroladamente. 

 Os aprendizes levaram o jovem até o jardim e o colocaram em um banco sob a sombra de uma árvore. O jovem tentava, inutilmente, desvincular-se dos aprendizes, mas ele não possuía qualquer força para se manter em pé, mais parecendo um trapo sendo arrastado pela praça. 

 Um dos aprendizes recuou de volta ao edifício, com um sorriso mordaz no rosto, enquanto o outro segurava o jovem descontrolado pelos ombros e o forçava a deitar no banco. Quando o jovem finalmente desistiu de resistir, o aprendiz colocou a mão na testa dele e ele parou de se mexer, inconsciente. 

 A cena foi chocante e todos na fila observaram aquilo perplexos. Meu coração batia apertado no peito; agora eu entendia quando meu pai tinha me dito para ser forte e não me deixar abater. Se eu fosse recusada, sairia de cabeça erguida e não daria a eles o gostinho de zombar de mim.

 Atrás de mim, até mesmo o jovem estranho com o livro tinha tirado os olhos dele para observar a cena. Seus olhos estavam com diversas olheiras e dava para notar que ele não tinha uma noite de sono decente há semanas. Seu rosto plácido e nariz achatado lembravam alguém das terras do norte. Ele sacudiu a cabeça, como se não concordasse com o que via, e sua boca era uma linha reta na face cansada. Tão logo o espetáculo acabou, ele voltou sua face para o livro e a fila começou a andar. 

 Mais três jovens entraram e, poucos minutos depois, os mesmos três saíram. Mais três jovens entraram e, poucos minutos depois, mais três jovens saíram. Mais três jovens entraram e, poucos minutos depois, mais três jovens saíram.

 Os rostos de derrota eram sempre os mesmos; alguns saíam enxugando as lágrimas, mas outros nem se importavam com elas rolando rosto abaixo. Meu coração foi ficando cada vez mais apertado, e mesmo cada vez mais candidatos entrando, a fila não diminuía. 

 Estava angustiada, perguntava-me que tipo de testes eles estavam realizando, como tudo poderia acabar tão rápido! Eu só sabia de um teste: o teste de quantidade de poder, pois foi neste que meu pai falhou. Seria possível que todos aqueles alunos que estavam falhando não possuíam poder necessário para ingressar na Academia? Será que a Academia só aceitava magos extremamente poderosos ou eles estariam falhando em outros testes?

 Eu precisava entender, “quando você conhece a maré, a pesca é sempre melhor”, meu pai sempre dizia. Precisava de alguma informação, para saber o que me aguardava. Pensei em deixar a fila e perguntar para aqueles que tinham falhado o que tinha acontecido, como eles tinham falhado e o que me aguardava atrás daquelas portas.

 Olhei para trás e vi que a fila atrás de mim já estava tão grande quanto à fila à minha frente. Se saísse, talvez eu nunca conseguisse uma oportunidade de ser testada. Não sabia quantas vagas a Academia estava oferecendo, mas sabia que seriam bem poucas.

 O jovem atrás de mim aparentava estar imune a tudo à sua volta. Enquanto todos na fila expressavam algum tipo de nervosismo, ele estava calmo e imerso na sua leitura. Talvez ele fosse um daqueles filhos de mercadores ricos que tinha oportunidade de estudar e soubesse, exatamente, quais testes iriam ocorrer, eu pensei. 

 Resolvi arriscar. 

— Ei, garoto, você sabe quais testes vão ser aplicados para nós? — Ele levantou a cabeça do livro, piscou duas vezes e me olhou, tentando entender se eu falava com ele. — Você sabe? — eu o questionei novamente me perguntando se ele não era um idiota. 

— São três testes — ele respondeu, limpando a garganta e continuou. — Um teste de poder, um teste de manipulação e um teste de conhecimento — explicou, olhando para mim. Eu assenti com a cabeça. Antes que ele voltasse a cabeça para o livro, perguntei novamente: 

— O que está lendo? — Ele pareceu surpreso com a pergunta por um momento, mas depois abriu um sorriso bobo e disse: — Estou lendo Gênesis: Os Três Deuses da Criação.

 Senti que já tinha visto aquele sorriso bobo em algum lugar e seus olhos eram sérios e expressavam ser muito mais velho do que seu rosto juvenil mostrava. Resolvi dar continuidade à conversa; se algo do que ele estava lendo pudesse ser útil nas provas, tentaria arrancar o máximo de informações que conseguisse. 

— E do que se trata? — A pergunta pareceu acender uma chama dentro dele, pois seus olhos despertaram com um brilho diferente no momento em que ele começou a falar. 

— Se trata da história da criação deste mundo. Como os três deuses criaram o sol, a terra, a água e o ar. Depois o encheram de vida, criando todos os animais. E por fim, fala sobre como ele criou as sete raças distintas. Primeiro, os Homens, depois os Tritões, depois os Orcs e os Avianos, para enfim criar os Elfos, os Goblins e as Fadas. — Ele explicou-me no mesmo tom que meu pai falava quando me ensinava sobre a melhor forma de arremessar uma tarrafa. 

— E depois presentearam cada uma das raças não humanas com um tesouro — eu disse, completando a narrativa dele. Se esse fosse algum dos conhecimentos que seriam cobrados na prova, certamente eu saberia responder; minha mãe contava essa história diversas vezes para mim quando eu era criança. 

 Ele concordou com a cabeça. 

— Os tritões dizem que eles vieram primeiro — falei, sem pensar, em voz alta. Essa era uma coisa que eu já tinha ouvido dizer diversas vezes entre os pescadores em Carrattenna. Que os tritões acreditavam ser a primeira raça criada pelos deuses. 

 Todos os humanos achavam isso ridículo, pois era óbvio que os humanos foram a primeira raça a ser criada. Éramos a única raça a ser criada pelos três deuses antes da divisão. Antes que os deuses desistissem de cooperar e criassem as raças à sua própria maneira. 

 Antes dos deuses abandonarem este mundo para lutar contra o pai. Todos sabiam disso, mas a incredulidade no rosto marcado pela falta de sono e os olhos que antes brilhavam intensos agora afundavam em uma penumbra duvidosa. 

 Ele me olhava de cima a baixo e eu não entendi o que tinha sido tão chocante na minha revelação. Ele disse como que para si mesmo: 

— Mas é claro, há divergências... — Ele ponderou por alguns segundos, parou de falar e olhou para cima, fitando o céu sob a cabeça. Fechou os olhos por mais alguns segundos, depois abaixou a cabeça de volta para o livro e começou a folhear as páginas que já tinha lido.

— Isso vai cair na prova? — perguntei, de forma tola e ele parou de folhear o livro e me olhou de forma estúpida. 

— O que? — Logo após falar, pareceu entender do que eu estava falando. — Ah, não. Isso não vai cair na prova.

 Eu fechei a cara para ele com raiva. Eu não sabia ler e não tinha ideia do que estava escrito naquele livro, perguntei-me se ele não estava mentindo para mim o tempo todo e eu acreditando na história dele como um peixe ao morder a comida fácil e descobrir o anzol. Ele estreitou os olhos na minha direção, analisando-me; fechou o livro marcando a página que estava com o dedo, deu um passo para o lado e varreu a fila à nossa frente. 

 Eu não tinha reparado que em meio a nossa conversa, algum tempo tinha se passado e que já tínhamos percorrido um bom caminho na fila. Quando ele voltou para dentro dela, olhou-me nos olhos e sorriu. O sorriso afetuoso que ele me deu, lembrava-me o sorriso que meu pai me dava. Então, falou-me:

— Você é bem mais forte que a maioria dos jovens aqui. Deve conseguir passar se se sair bem na segunda ou terceira prova.

 Meu queixo foi ao chão com essa afirmação. Senti minha face corando com aquele sorriso que eu tanto sentia falta e me virei para frente na fila. Cruzei os braços e prendi minha respiração. Meu coração batia forte. Poderia ele realmente saber que eu era tão mais forte que os outros candidatos? Será que eu realmente teria chance? 

 Acalmei-me um pouco e resolvi olhar de volta para o garoto. Ele já estava de volta ao livro, lendo compulsivamente. Isso me irritou um pouco, mas deixei passar tentando não ficar irritada com a forma rápida com que ele tinha me dispensado.

 O edifício de onde o mago branco tinha saído ficava à esquerda do jardim e o edifício onde os candidatos estavam sendo testados ficava ao norte. Uma passarela era coberta com arcos de pedra e um telhado de cerâmica. A passarela ligava o edifício da esquerda ao edifício ao norte. A fila convergia para debaixo da passarela à medida que os candidatos iam entrando e saindo. 

 Depois de tanta espera, finalmente tinha chegado minha vez. Os três candidatos que estavam na minha frente foram mandados entrar, o que significava que os próximos três candidatos seriam eu, o garoto lendo o livro e mais o que estava atrás dele.

 O frio na barriga e o suor que brotava em minhas mãos estavam acabando comigo. Eu só conseguia pensar no meu pai e na minha família. Como eu não podia fracassar e como a afirmação do garoto de que eu era forte me dava uma pequena gota de esperança.

 Os três que tinham entrado, finalmente saíram e a desolação nos rostos deles dizia tudo sobre os resultados do teste. Ao comando dos aprendizes para que entrássemos, eu congelei. O primeiro passo foi o mais difícil, minha perna tremeu e eu achei que não fosse conseguir. 

— Tente manter a calma, será mais difícil liberar seu potencial assim. — Ouvi atrás de mim a voz do garoto, eu acordei e respirei fundo. Ao encará-lo vi que ele falava com um sorriso afetuoso no rosto e o livro fechado debaixo do braço. Voltei a olhar para frente e não pude deixar de pensar em meu pai me incentivando e continuei. 

 Os aprendizes de mago nos mandaram seguir por um corredor, e no final dele três salas estavam com as portas abertas e um aprendiz estava na porta de cada uma delas. Ele parou-nos e perguntou quem de nós seria o primeiro. Eu estava apavorada e não queria ir na frente. O garoto com o livro deu um passo à frente e adentrou a sala. 

 O aprendiz nos disse para aguardarmos, entrou e fechou a porta. Eu e o outro garoto ficamos esperando. Meu coração batia forte igual às ondas no cais em um dia de tempestade, querendo pular pela boca. Ouvi certas instruções sendo dadas através da porta, mas não conseguia discernir as palavras. 

 Depois de um curto intervalo de tempo pude ouvir um “oh!” de admiração e depois conversas paralelas. Assim que a voz cessou, ouvi alguns passos vindo em direção à porta. Ela abriu e o aprendiz saiu de lá com o garoto segurando o livro logo atrás dele. 

— Vá para a próxima sala — disse o aprendiz. — O próximo — ele chamou, indicando que um de nós deveria ir. 

— Boa sorte! — O garoto falou, com aquele sorriso afetuoso, que não largava o rosto dele. Fechei os olhos e os abri de novo; dei um passo à frente, era hora da verdade! 

 

***

 

 A sala era ampla, várias mesas e cadeiras tinham sido arrastadas para os cantos, com exceção de uma mesa grande na frente da sala na qual pilhas de papéis estavam amontoadas. Três mestres estavam de pé no centro, ao lado de um círculo desenhado no chão. 

 Três enormes janelas estavam abertas deixando a iluminação e o vento fresco e com cheiro doce de flores entrarem. Através das janelas era possível ver um jardim interno ao edifício. 

 O círculo tinha diversas outras figuras geométricas no centro e pequenos outros círculos estavam desenhados no perímetro do círculo maior equidistantes um do outro. Posicionados nos círculos externos, três pedestais dourados, finamente trabalhados, seguravam uma joia, cada joia possuía uma cor diferente.

— Se posicione no centro do círculo, por favor — disse um dos mestres que estava próximo ao círculo, gesticulando para onde eu deveria ir. Mais uma vez precisei respirar fundo e caminhar com passos curtos, mas assertivos. Ao chegar ao centro, o mestre voltou a falar. — Iremos extrair uma certa quantidade de sua mana, você pode se sentir um pouco tonta, se sentir que não aguenta mais, é só avisar e paramos. Facilita se você se manter relaxada. Podemos começar?

 Sua voz era de alguém cansado. De certo, ele já devia ter feito esse procedimento diversas vezes. Ele esperou até que eu concordasse para enfim começar a se mover. Cada mestre se aproximou de um pedestal com uma das joias. Tentei não prender a respiração e sim relaxar, mas a tensão era muito grande, e quando o primeiro mestre tocou uma joia vermelha em um dos pedestais e nada aconteceu parecia que tudo estava dando errado.

 O mestre esperou alguns segundos e então fez um gesto para o outro que estava em frente ao pedestal, com a joia azul. O mestre tocou na joia e ela imediatamente começou a brilhar fortemente em tom azul-escarlate. O mestre abriu um sorriso e gesticulou positivamente. 

 Eu relaxei um pouco entendendo agora do que aquele teste se tratava. Eles estavam testando meu poder, eu conseguia sentir a minha fonte de mana azul sendo drenada de mim. Conseguia ver várias linhas fininhas de mana azul saindo de mim em direção à pedra. 

 A pedra vermelha não teve efeito, pois eu não tinha nenhuma reserva de mana vermelha dentro de mim. De repente senti um puxão estranho e algo começou a se esvair de mim, olhei para trás e não tinha reparado que o terceiro mestre, ao lado do pedestal com a gema amarela, tinha começado a tentar drenar minha mana amarela também. 

 A joia amarela brilhava com uma luz dourada encantadora, ainda mais forte que a azul. Foi surpreendente saber que eu tinha potencial em outras cores de mana. Estava tão imersa no processo, admirando minha própria mana sendo drenada, agora em linhas amarelas e azuis, que me assustei com os mestres falando: 

— Outro candidato promissor — um dos mestres falava com o outro. 

— Ela não tem potencial com as três cores, como o outro — ele disse com descaso.

— Mas ela tem um potencial incrível no amarelo — o terceiro falou, verdadeiramente impressionado.

 No amarelo? Pensei… Mas meu talento era no azul!

 — Qual o seu nome, garota? — Um dos mestres tinha ido até a mesa e segurava um pedaço de papel e uma pena. 

— Molli. Se escreve com as runas de sorte e felicidade — respondi, incomodada. Será que eu deveria pedir uma revisão no meu teste? 

— Você veio de onde, Molli? — Ele continuou escrevendo no papel. 

— Venho de Carrattenna! — Ele assentiu com a cabeça e terminou de escrever.

— Pode ir, Molli de Carrattenna, vá fazer o teste na próxima sala. Você foi muito bem neste — o mestre disse, enquanto anotava meu nome e me dispensava formalmente. O aprendiz que estava na porta gesticulou para que eu saísse e decidi que não era hora para questionar se os mestres tinham realmente errado. 

 Saí da sala e o aprendiz me indicou a próxima porta. A segunda sala era muito parecida com a primeira que eu tinha entrado. A única diferença era que as três mesas estavam no centro dela. Em uma delas, no centro, havia uma bacia com água; na segunda, à esquerda, uma bacia com areia e na terceira, à direita, uma pequena haste de madeira com várias hélices finas de papel, anexas, que rodavam com a brisa que entrava pela janela. 

 Eu entrei e o aprendiz, que estava na porta da segunda sala atrás de mim, logo fechou a porta. Três mestres estavam sentados, conversando no canto da sala. Ao sinal da minha entrada, eles se levantaram. O que estava no meio veio à frente e perguntou: 

— Em qual cor é seu talento jovem? 

— Eu tenho talento com as linhas de mana azul, mestre — respondi nervosa, pensando se tinha dado a resposta correta. Ele assentiu e indicou que eu fosse até a mesa, com uma bacia de água em cima dela. Cheguei até a mesa hesitante e olhei para dentro da bacia, aparentava ser só uma bacia com água normal, mas, mesmo assim, tive dúvidas, olhando com suspeita para a água.

— Você vê aquelas estátuas, lá fora, no jardim? — O mestre apontou para fora das grandes janelas, que eram exatamente iguais às da outra sala. Porém, desta sala, era possível ver três estátuas completamente diferentes, no meio do jardim. A visão das estátuas era impossível de ser vista da outra sala onde eu havia realizado o primeiro teste.

 A primeira estátua tinha a forma de uma corda, saindo do chão, dando várias voltas em torno dela mesma, e voltando para o chão. A segunda era composta por vários cubos amontoados, um em cima do outro alguns dos cubos tinham partes deles entrando um dentro do outro. A terceira estátua era a imagem de uma pessoa sem feições no rosto, acenando, despedindo-se de alguém. 

— Você consegue fazer a água nessa bacia tomar a forma de alguma dessas estátuas? — O mestre me perguntou e eu encarei atentamente as estátuas com olhos sombrios. Era comum entre os marujos, com habilidade em manejar as linhas de mana azul, usar elas para facilitar o movimento das embarcações nas águas e levar os navios até o cais ou criar ondas artificiais para atolar os navios para reparo. 

 Nunca tinha feito a água tomar forma de nenhum objeto desse tipo antes. Usava as linhas de mana azul para fazer a água correr de forma mais rápida sobre o casco do barco e acelerar; fazia pequenas bolhas de água para capturar peixes e usava as correntes de água para mandar os cardumes para as nossas redes. Esses eram os usos mais comuns entre os pescadores.

— Nunca fiz isso, mestre, mas vou tentar — respondi com sinceridade e ele assentiu para que eu começasse. Concentrei meu foco na estátua, com a forma de uma pessoa, era o formato mais fácil que minha mente conseguia compreender; as outras duas estátuas eram muito abstratas. 

 Comecei a mandar as minhas linhas de mana até a água na bacia; fiz como eu estava acostumada, quando eu queria que a água obedecesse ao meu comando. Mas, de forma sutil, comecei a puxar as linhas e as dobrar como um mestre de marionetes faz para mexer seus bonecos. 

 A água na bacia começou a subir formando uma bolha. Eu lutava com as linhas para que elas não se emaranhassem demais, enquanto as embalava envolta da água para tentar formar a figura da estátua. Uma figura disforme de um homem começou a surgir. Meu esforço devia ser visível, pois os outros dois mestres tinham se aproximado e estavam observando.

 Cheguei perto de formar a figura por completo, quando uma das linhas que eu não estava prestando atenção se soltou e toda a geometria do objeto se desfez, virando uma bola de água comum no fundo da bacia. Eu praguejei comigo mesma por ser tão descuidada e estava prestes a recomeçar quando o mestre, que estava próximo de mim, parou-me e disse: 

— Está ótimo, é o suficiente. 

— Mas eu consigo fazer, me deixa tentar só mais uma vez! — implorei. Eu não podia falhar, não agora. Eu tinha passado do teste de poder, eu não podia falhar no teste de manipulação, pois eu não tinha qualquer esperança de conseguir passar no teste de conhecimento. 

O mestre levantou a mão para que eu me calasse e, embora eu quisesse continuar implorando, eu parei. Eu não me humilharia, sairia de cabeça erguida. Eu tinha decidido isso. 

— Não é necessário, você foi bem o suficiente. Qual é o seu nome, minha jovem? — As palavras dele me deixaram tonta; pisquei, tentando espantar as lágrimas que estavam querendo se formar no canto dos olhos, antes pela sensação de derrota, agora pela alegria da vitória. 

— Mo... Molli, mestre — gaguejei. Engoli o choro, “agora não!”, falei comigo mesma e continuei. — Escrito com as runas de sorte e felicidade.

 Os mestres escreveram meu nome e me perguntaram de onde eu tinha vindo. Terminadas as perguntas, eles me indicaram a próxima sala. Na terceira sala, como eu já esperava, o terceiro teste foi um fracasso total. Não soube responder nenhuma das perguntas que os mestres fizeram, porém foram bem condescendentes. 

 Eles me disseram que não esperavam que eu soubesse a resposta de nenhuma delas devido às minhas origens, as quais eles fizeram bastante questão de pontuar. Disseram que se eu tivesse ido bem nos dois últimos testes, minhas chances de ingressar na Academia eram boas, contanto que não houvesse muitos alunos melhores que eu.

 Saber que eu tinha ido bem nos dois primeiros testes foi animador e preocupante. Será que eu realmente era mais forte que a maioria e não precisava me preocupar com outros candidatos? Essa pergunta martelava na minha cabeça como ondas nas pedras. Eu saí do prédio e decidi procurar o garoto com o livro. Ele não devia ter ido longe do prédio, já que devíamos aguardar pelos resultados. 

 Não foi difícil encontrá-lo. Ele estava no jardim em frente aos prédios e, sem nenhuma surpresa, estava lendo o famigerado livro, sentado em um banco embaixo de uma árvore. Aproximei-me e fiquei em frente a ele. 

— Como você sabia? — Minha pergunta saiu sem que eu pudesse formulá-la corretamente.

 Ele levantou a cabeça do livro e me encarou com aquele sorriso afetuoso.

— Parabéns! — ele disse com curiosidade e ficou me fitando. Perguntei novamente. 

— Como você sabia? — Ele fechou o livro, afastou-se para a lateral do banco e fez um gesto para que eu me sentasse ao lado dele.

 Eu não tinha certeza se eu queria me sentar ao lado dele, mas se queria pescar informação precisava ir conforme a maré. 

 Assim que eu me sentei, ele perguntou: 

— Qual é o seu nome?

 Eu respondi, casualmente: 

— Molli. — Ele assentiu com a cabeça. 

— Eu me chamo Annanis. Sinto que seremos bons amigos — falou, sem deixar esmorecer o sorriso. 

 Fiquei mais chocada que peixe ao morder a isca e se espetar com o anzol, mas antes que pudesse negar ou concordar com tal afirmação, ele continuou. 

— Como eu sabia o que exatamente? — Eu olhei para ele com os olhos cerrados, tentando identificar se ele estava fazendo algum tipo de piada comigo.

 Decidi ignorar a alegação dele de que seríamos amigos e ir direto ao que me interessava. 

— Como você sabia que eu era forte? Como você sabia que eu era forte tanto nas linhas de mana amarela como nas azuis? — perguntei, cuspindo um pouco de raiva na voz. Ele me olhou surpreso e por um momento o sorriso dele se desfez, quando o queixo dele caiu. 

— Eu não tinha ideia disso! — ele disse e voltou a sorrir. — Eu apenas usei um truque que aprendi para determinar o quão grande são as reservas de mana de uma pessoa — ele me explicou, como se pedisse desculpas. — Mas, com esse truque, não dá para saber quais reservas de mana uma pessoa pode armazenar.

 Ele parou de falar por um momento, levou a mão ao queixo e o alisou, ponderando por um momento. Quando abri a boca prestes a fazer outra pergunta, ele me interrompeu empolgado. 

— Não é comum alguém ser forte em duas cores sem treinamento. Você consegue usar as duas?

 Eu neguei com a cabeça e ele assentiu desapontado. Aproveitei o momento de silêncio dele para, enfim, falar. 

— Que truque é esse que você usou? —  E a perguntou reacendeu alguma coisa nele, pois quando ele começou a falar as palavras saíram em uma cascata de informações.

— Bom, eu estou estudando aqui na Academia já há alguns meses. Na biblioteca, sabe? E todas as vezes que eu estava distraído, estudando, sentia que os outros aprendizes ficavam me encarando; volta e meia sentia uma pressão esquisita encostando em mim, não era em nenhum ponto específico, mas sentia como se algo me pressionasse.

— Com o tempo comecei a perceber que, na verdade, os aprendizes estavam lançando pequenas linhas de mana na minha direção. Eu não entendia o motivo daquilo, pois elas apenas batiam em mim e se refletiam.

— Foi só quando eu tentei fazer o mesmo que eles estavam tentando fazer comigo com Alanno, que ele me explicou que… — Eu não estava entendendo nada do que ele estava falando, minha cara devia ter denunciado, pois ele percebeu que estava falando demais e parou.

— Oh, perdão, às vezes eu me empolgo e falo demais. — Eu assenti e ele continuou. — Resumindo, você dispara linhas de mana em direção a um objeto e vê como elas são repelidas; isso indica a quantidade de mana que aquele objeto tem armazenado.

Eu assenti com a cabeça, concordando, embora a explicação dele não me dissesse nada. 

— Você consegue me ensinar? — perguntei, esperando a reação dele. 

— Claro, vamos tentar agora! — A empolgação dele me pegou de surpresa e eu me remexi, desconfortável, no banco.

— Agora? — Ele se admirou, olhando-me com aquele sorriso afetuoso de que tudo estava bem e ignorou minhas incertezas. 

— Vou usar algumas linhas de mana azul em você, veja se consegue acompanhá-las. — Ele se afastou um pouco mais no banco, uma brisa fresca soprava no jardim e as folhas, acima de nós, farfalhavam à medida que o vento passava. Ele focou a atenção dele em mim e eu fiquei parada, observando.

 No início, eu não conseguia ver as linhas de mana, eram muito finas e o próprio vento as fazia tremerem. À medida que elas foram se alongando e chegando mais perto, pude vê-las se afastando em direções diferentes. Uma estranha sensação beliscava minha barriga. Lembrei-me de quando era criança e colocava meus pés na água e deixava os lambaris beliscarem meus pés, era uma sensação gostosa. 

— Está sentindo, não está? — Eu assenti, sorrindo. 

— Faz cócegas, como se fossem peixes me mordiscando. 

 O sorriso dele virou uma gargalhada. 

— Peixes beliscando! Talvez a sensação seja diferente de pessoa para pessoa. — Ele ria sem parar e eu fiquei com raiva dele, tirando uma com a minha cara. 

— Deixa eu tentar agora — respondi com raiva, fazendo ele parar com as risadas abobalhadas. 

 Ele parou de enviar as linhas de mana azul dele em minha direção e esperou por mim. Eu fiquei um bom tempo para conseguir focar minha atenção e fazer com que as minhas linhas de mana azul surgissem. 

 Eu estava acostumada a mandar grandes quantidades de mana azul para fazer a água me obedecer, nunca tinha tentado usar linhas finas e sutis como as que ele tinha usado. Por mais que eu tentasse, minhas linhas eram grossas e rudes perto das dele. Quando as minhas linhas batiam nele, era como se despedaçassem, ao invés de refletirem como as dele faziam.

 Eu estava ficando cada vez mais frustrada a cada tentativa. Também não ajudava em nada, que toda vez que eu colidia com uma linha de mana azul nele, ele dava um grunhido de desconforto. 

— Está doendo? — perguntei, quando ele prendeu a respiração, pela terceira vez, ao receber minha linha de mana azul. 

— Não é que esteja doendo, é só que causa um desconforto, quando você colide com tanta força, na minha barreira de mana externa. 

 Eu parei de canalizar minhas linhas de mana, desapontada, iria ser bem mais difícil do que eu pensei, será que todo mago sabia fazer isso? 

— Não precisa se preocupar tanto com isso, com um pouco de treino você vai conseguir melhorar a liberação do seu fluxo de mana — ele disse e não pude deixar de notar em como ele explicava do mesmo jeito que meu pai gostava de ensinar, sem pressa e deixando que eu levasse o tempo que precisasse. 

 Decidi que haveria tempo para eu treinar, se eu fosse tão forte como os mestres diziam, isso não seria uma barreira. 

— Quão mais forte eu sou que um aprendiz? Consegue me falar se aquele aprendiz é mais forte que eu? — Eu apontei para um dos aprendizes, que estava ajudando na organização da fila.

 A fila tinha reduzido muito de tamanho se comparado ao de quando eu, inicialmente, tinha entrado, mas cada vez mais e mais jovens chegavam para entrar no final dela, dando a impressão de que os candidatos nunca iriam parar de chegar. 

— Eu não conseguiria dizer dessa distância, eu teria que chegar mais perto e Alanno disse que é falta de educação um mago tentar medir a força do outro ou mandar qualquer tipo de linha de mana sem consentimento. 

 Eu direcionei um olhar atravessado e ele me deu um sorriso maroto. 

— Bem, nenhum dos candidatos é mago ainda. — Ele deu uma gargalhada e continuou. — Alanno me daria um sermão de horas se me ouvisse falando isso. — Eu dei um sorriso mais por educação do que por achar graça.

 Eu não tinha ideia de quem era esse Alanno de quem ele tanto falava. Como se tivesse lido meus pensamentos, ele disse:

— Vou te apresentar a ele; é um ótimo rapaz, você vai adorar. — Ele ficou me olhando, com expectativas, até que eu concordei com a cabeça, incomodada com o olhar.

 Ficamos sentados no banco do jardim, a brisa soprava vez ou outra, trazendo o aroma doce das flores. Ele perguntou-me de onde eu vinha e contei um pouco de Carrattenna e sobre minha família. Ele também perguntou como eu tinha descoberto meu talento e contei para ele sobre o dia na praia em que dobrei uma das ondas, contei sobre como usava a minha habilidade com a mana azul para a pesca junto de meu pai e ele ficou maravilhado, perguntando-me por detalhes. Pediu-me se um dia eu poderia levá-lo para pescar e o ensinar como eu fazia.

 Não sei ao certo por que falei tanto e nem por que ele ficou tão maravilhado por coisas tão simples do meu dia a dia. Quando eu perguntei sobre ele e de onde ele vinha, ele foi vago sobre o assunto, desconversando sobre sua origem e me contando, ao invés disso, diversas coisas que ele tinha lido na biblioteca. 

 Contou-me diversas histórias sobre as antigas guerras. Eu não entendia praticamente nada do que ele falava, mas ele contava com uma paixão que fiquei dispersa naquele sorriso afetuoso, lembrando das vezes que meu pai contava histórias, enquanto comíamos à noite. 

 Ele falava numa mistura de ultraje e fascinação, em como as histórias às vezes não batiam ou em como havia furos de um relato para o outro. Conversamos por horas e mal pude ver o tempo passar.

 Lembrei que da última vez em que conversei tão abertamente e de forma tão descontraída com alguém foi em casa com minhas irmãs. Uma saudade de casa bateu forte no peito e me imaginei de volta ao lar.

 Logo o sonho se desfez e lembrei que a situação de nossa família não era nada animadora e quando conversava com minhas irmãs, principalmente com Dattina, sempre terminávamos falando de garotos e acabávamos brigando por eu a achar uma cabeça de vento em acreditar que algum príncipe viria resgatá-la de nossa pobreza. 

 O sol já tinha começado a se pôr e eu não tinha reparado que os mestres já tinham encerrado a seleção de alunos. Muitos deles ainda estavam perambulando no entorno dos prédios e um pequeno grupo argumentava, com alguns dos aprendizes na porta do prédio, onde tinham acontecido as provas.

 Annanis se levantou do banco, espreguiçando-se. 

— Os mestres devem postar os resultados muito em breve. — Com um estalar de juntas, ele continuou. — Vamos ver o que está acontecendo? — Eu concordei. Levantei-me, dando uma leve alongada e seguimos até a porta.

 Ao chegarmos mais perto entendi do que se tratava a discussão na porta do edifício. Os candidatos discutiam bravos com os aprendizes sobre ainda terem tempo para fazer as provas. Dos aprendizes apenas um ainda continuava falando, tentando acalmar os candidatos. Os outros aprendizes estavam aborrecidos de braços cruzados.

 Em meio à discussão, um sino tocou, indicando que aquela era a última hora do dia. Ao choque das badaladas do sino pude ver o aprendiz que tentava convencer os candidatos se desculpando e gesticulando com as mãos, como se não houvesse nada que ele pudesse fazer. 

 O sino parou de tocar e o pequeno grupo de candidatos, que estava em frente à porta, tinha desistido e recuado. Alguns candidatos ainda estavam por perto e uns poucos começaram a se aproximar. Para minha surpresa, pude ver Hazze se aproximando; ele também me viu e eu o cumprimentei, ele acenou e veio chegando mais perto.

 Annanis viu que eu estava prestando atenção em algo atrás de nós e se virou para ver o que eu estava olhando. — Amigo seu? — perguntou, enquanto Hazze vinha todo sorridente. 

— Molli! Não esperava que fosse ver você aqui!

— E por que você não esperava? — perguntei, furiosa, cruzando os braços e ele retrocedeu um passo espantado. Continuei sem piedade. — Você e todos os outros que desapareceram da caravana, sem falar nada, deviam ter vergonha. Não honraram com o combinado e fugiram como gaivotas assustadas. — Antes que ele tivesse a chance de oferecer qualquer desculpa esfarrapada, a porta do edifício se abriu e três magos saíram lá de dentro. 

 Eles caminharam alguns passos pela passarela de pedra e pararam. Olharam em volta para conferir os olhos aflitos dos que os aguardavam. Eu ignorei Hazze e concentrei minha atenção nos três mestres.

— Atenção, todos os candidatos que passaram ao menos da primeira prova! — Ele parou para observar se todos estavam prestando atenção, o único som no pátio era o do vento. — Foram contemplados 25 nomes, que serão os aprovados para ingressar na Academia. — Com o número, meu coração deu um salto, tinha ao menos 50 candidatos aguardando no pátio e centenas tinham feito o teste.

— Ao ouvirem seu nome, se aproximem até a passarela. — O mestre parou para limpar a garganta e então recomeçou. — Torzzo! — Um rapaz forte e alto se aproximou. — Tattiro! — Outro rapaz parrudo e baixo se aproximou. — Annanis! — Não foi surpresa ouvir o nome dele e nem o sorriso vitorioso que ele deu ao se aproximar da passarela.

— Hazze! — Ao ouvir o nome dele, senti um aperto tão grande no coração, que me faltou força para puxar o ar para os pulmões. Eu seria recusada e um pivete despretensioso como Hazze roubaria meu lugar? Foi o som rouco e grave do mestre que me devolveu o ar para os pulmões: — Molli!

 Demorei um pouco para entender que era o meu nome que o mestre tinha chamado. Annanis me olhava preocupado até eu me dar conta de que era eu mesma. Ao aproximar-me, ele me recebeu com o seu casual sorriso afetuoso.

 O mestre continuou pronunciando o nome dos outros candidatos que tinham passado, até o último. Depois de ouvir meu nome, eu não consegui prestar atenção em nenhum deles. Tudo que se passava na minha mente era… “eu consegui, papai, eu consegui!”. As lágrimas caíam pelo meu rosto e pela primeira vez na minha vida, eu chorava de felicidade.

 

***

 

 Depois que os mestres terminaram de pronunciar todos os nomes da lista, eles deram diversas instruções para os novos alunos sobre as regras e o funcionamento do campus. Disseram que os alunos que necessitassem de bolsas para sustentar seus estudos dentro do campus deveriam procurar o mestre Sullivan, no prédio administrativo, no dia seguinte.

 As aulas iam começar em dois dias, de acordo com o calendário oficial da Academia. Contudo o mestre nos instruiu a preparar nossos materiais de aulas e que aquele era só o início da jornada, e, para nos colocar medo, disse ainda que muitos não aguentavam o ritmo e desistiam no meio do caminho. 

 Por fim, o mestre finalizou, dizendo que deveríamos nos dirigir aos dormitórios. Quando ele mencionou indicar algum dos aprendizes para que nos mostrasse o caminho, Annanis veio à frente. 

— Mestre! — Ele fez uma mesura formal e continuou. — Imagino que os aprendizes estejam cansados por terem trabalhado o dia todo nas provas e eu já conheço o caminho, posso guiar todo mundo.

 O mestre cerrou os olhos para Annanis, provavelmente tentando identificar quem estava falando. 

— Ah, você é o jovem aprendiz que Talannor estava cuidando. — O mestre fez um aceno de cabeça, confirmando para si mesmo. — Pois bem, pode mostrar o caminho — ele disse, fazendo uma dispensa com a mão e se virando para falar com os outros mestres, que estavam atrás dele.

 Annanis olhou em volta, confirmando que todos os novos aprendizes o tinham identificado e fez um sinal com a cabeça cumprimentando a todos e nos chamou para o seguirmos. Foi então que olhei para trás e me dei conta dos candidatos que não haviam sido chamados. Muitos deles estavam paralisados feito estátuas, uns tinham desabado no chão e outros cobriam o rosto e choravam em soluços suprimidos pelas mãos. 

 Minha alegria por ter passado de repente se desfez em uma melancolia solidária. Não havia nada que eu pudesse fazer, mas ao mesmo tempo sentia que era vergonhoso ficar contente por ter conseguido passar quando tantos outros tinham chegado tão perto e falhado.

 Já estávamos a certa distância, descendo em direção à rua da feira. Nenhum de nós nos conhecíamos ainda, apesar de estarmos todos contentes por termos passado nas provas e nos tornado aprendizes dentro da Academia. Um silêncio mórbido pairava sob o grupo.

 O sol já estava em seus últimos filamentos de luz. A temperatura na primavera era agradável, mas ali, dentro do campus, era como se o melhor clima da primavera tivesse despertado em um abraço acolhedor; até sentir-se melancólico era difícil. Eu imaginava se todos estavam pensando o mesmo que eu, em como tínhamos passado por muito pouco e por pura sorte, quando Annanis falou: 

— Colegas! — Ele parou e se virou para o grupo, que caminhava logo atrás dele. 

— Parabéns a todos que passaram, suspeito que cada um tenha tido suas próprias provações para chegar até aqui. — Os novos aprendizes se entreolharam confusos e Annanis os encarou, confiante.

— Ao chegar ao dormitório, devem procurar por Bello. É ele quem vai receber vocês e indicar os quartos. No refeitório, uma pequena confraternização está aguardando para receber os novos alunos, isso inclui bastante comida. Vocês estão todos livres para se juntarem a ela, se quiserem.

 Como se aquela fosse uma notícia melhor do que ser nomeado para se tornar um aprendiz da Academia, os alunos começaram a conversar uns com os outros em tons de risadas, como se, instantaneamente, fossem melhores amigos.

 Annanis retomou o passo e agora alguns dos alunos se juntaram a ele, rindo e fazendo perguntas. Ele indicou o caminho que tínhamos que seguir e os garotos, empolgados, apressaram o passo. Ele olhou para trás, procurando alguém, até me encontrar no canto mais afastado do grupo de aprendizes.

 Ele diminuiu o passo e esperou que eu passasse por ele para caminhar ao meu lado. 

— Eu acabei me esquecendo de mencionar; você tem que procurar Larissa, ela é a responsável pelos dormitórios femininos — ele disse e eu concordei com a cabeça, perguntando-me por que ele tinha dito isso apenas para mim. Foi então que me dei conta de que era a única mulher em todo o grupo.

— Vai se juntar à confraternização? — ele me perguntou, cheio de expectativas nos olhos. 

— Acho que sim — respondi sem ter muita saída. 

— Ótimo! Alanno vai estar lá e quero muito te apresentar a ele. — Caminhamos em meio ao frenesi de conversas entre os garotos, enquanto Annanis me falava como estava ansioso para ter acesso a novos documentos na biblioteca, já que agora era um aprendiz de mago e não tinha mais tantas restrições.

 Ao chegarmos aos refeitórios, fiquei perplexa pelo tamanho do lugar. Ainda mais perplexa pelo quanto ele estava vazio. Várias fileiras de mesas e cadeiras eram suficientes para quase 300 pessoas e apenas três mesas estavam ocupadas com quatro ou cinco alunos em cada uma delas.

 Na primeira mesa, logo na entrada, cinco alunos estavam sentados com um pequeno banquete à frente. Nossa chegada pareceu assustá-los e Annanis correu à frente para cumprimentá-los. Eu e os alunos novatos ficamos parados em silêncio à porta, incomodados, como se o lugar fosse hostil à nossa presença.

 Annanis falou gesticulando algo para os alunos que estavam na mesa, que concordavam com algo, parecendo um pouco desconfortáveis. Annanis então se virou e nos chamou para nos juntarmos a ele. 

 Os novatos que estavam aguardando, calados e incertos, irromperam como um cardume em direção à comida; fui carregada junto deles e me vi sem opção de recuar. Dei-me por mim ao lado de uma das alunas que estava no grupo que Annanis conhecia. Cumprimentei-a sem jeito e ela sorriu. 

— Venha, vamos arrumar um espaço para você. Meninos são uns brutos, principalmente de barriga vazia. Me chamo Teissa. Venha, vamos nos sentar.

 

Capítulo III 

O Sábio 

 

 Eu achava que já estava acostumado e que não havia mais nada que eu pudesse esperar de Annanis. Mas ele fazia questão de sempre me mostrar que eu estava errado, sempre encontrando um novo jeito de me surpreender. 

 Tentei dizer a mim mesmo que não estava surpreso em vê-lo chegando no refeitório com toda a turma que tinha passado na seleção, mas seria uma mentira dizer que não fiquei, no mínimo, chocado. 

 Já era surpreendente que aqueles magos próximos a ele tivessem decidido fazer uma pequena comemoração para quando passasse nas provas. E não era como se houvesse qualquer dúvida de que não passaria; eles simplesmente aceitaram o fato de que ele passaria. Não que eu mesmo já não estivesse me conformado com a ideia de que ele seria aceito.

 Ele conversava com todo tipo de aprendiz e não se preocupava muito com o que pensassem dele. Sua maneira desprendida e sincera de falar atraía as pessoas. Era difícil dizer em que momento ele começou a absorver a forma de falar e os trejeitos dos outros aprendizes.

 Lembro-me que em pouquíssimo tempo o sotaque terrivelmente acentuado de Annanis desapareceu e ele falava como se tivesse pertencido às regiões centrais de Mirridinna a vida toda e eu nem percebi a mudança. Como se um dia ele tivesse acordado e decidido que não falaria mais agarrado e tropeçando nas palavras.

 Nas primeiras semanas, após termos nos tornado amigos, eu fiz tudo que pude para ele saber exatamente o que os mestres cobrariam nas provas e ele absorveu as informações como uma esponja. Até mesmo as perguntas que eu sabia que os mestres não perguntariam em um teste de admissão, ele soube responder.

 Em se tratando de magia, eu não podia ensinar a ele nenhum tipo de manipulação das linhas de mana, era proibido um aprendiz ensinar qualquer tipo de coisa a alguém que também não fosse aprendiz da Academia, sujeito à punição de ser expulso. 

 Mesmo assim, ele fazia questão de me mostrar o quanto ele era notável em aprender. As primeiras pegadinhas que Dazze tentou pregar nele foram totalmente efetivas, mas acredito que ninguém poderia imaginar os resultados delas.

 A primeira pegadinha que ela aprontou com ele foi usar as linhas de mana amarela para manipular o ar e fazer com que ele tropeçasse em uma parede de ar e caísse no meio da biblioteca. Ela escolheu o momento oportuno, com várias testemunhas e quando ele carregava uma pilha de livros.

 Ele tinha se tornado um leitor obsessivo, lembrando muito de mim mesmo nos primeiros anos na Academia, quando meus melhores amigos eram os livros. O gosto por livros históricos e o interesse obstinado nas batalhas das eras passadas era tão grande quanto o meu, senão maior.

 A queda no meio da biblioteca, espalhando livros para todos os lados e levando todas as testemunhas a darem gargalhadas histéricas, era o tipo de humilhação favorita de Dazze. Ela sempre achava um momento em que eu não podia ajudá-lo ou que mesmo que pudesse, não havia nada o que fazer.

 Minha perícia era na cor azul e eu estava treinando para me fortalecer na cor amarela. Dazze era extremamente talentosa na cor amarela e conseguia trançar suas linhas mais rápido do que eu podia fazer algo para dissipá-las. Minha defesa contra essas pegadinhas era criar um emaranhado de linhas azuis ao meu redor, dificultando que outro mago pudesse estabelecer qualquer tipo de linhas próximas a mim. 

 Essa era uma habilidade muito difícil de se alcançar e demorei meses sofrendo todo tipo de pegadinha até conseguir chegar aonde cheguei. Estava de coração partido por não ajudar Annanis, mas não podia confrontar diretamente os outros alunos e nem tentar ensiná-lo a criar o mesmo tipo de barreira já que seria óbvio que ele teria aprendido isso comigo.

 Minhas preocupações não se manifestavam nele. Na verdade, ele parecia ávido pelas pegadinhas de Dazze. Eu passava a maior parte do tempo nos refeitórios dos alunos bolsistas junto a Annanis. Conversávamos sobre todo tipo de coisa, exceto as pegadinhas de Dazze.

 Foi em uma das nossas caminhadas, enquanto andávamos juntos sob uma das passarelas que cruzavam o rio, em direção ao refeitório, nos dormitórios dos alunos bolsistas, que encontramos Dazze e mais dois amigos dela vindos do lado oposto.

 Ela estava esperando nossa passagem, pois assim que eu a avistei ela começou a criar uma elaborada malha de linhas amarelas para manipular o ar. Eu tinha certeza do que aquilo se tratava e eu tentei impedir que ela completasse a malha, interferindo com as minhas próprias linhas de mana amarelas e azuis. 

 Os dois outros garotos, que estavam com ela, barraram minhas linhas de mana com as deles, e eu não pude fazer nada quando a rajada de ar poderosa acertou Annanis como um furacão na lateral do corpo, empurrando-o pela proteção lateral cinza polida da ponte.

 Corri preocupado até a proteção, para ver que ele tinha se recuperado da queda, de maneira tão rápida que se não o conhecesse, não teria acreditado que ele já estava esperando cair. O livro que estava carregando, ele tinha conseguido proteger com uma teia de linhas azuis para impedir que a água o atingisse. Como eu, ele era bastante habilidoso com as linhas de mana azul. 

 Dazze e os outros dois amigos se aproximaram irônicos. 

— Você está bem, caipira? Não quebrou nada, não é mesmo?

 O rio que cortava o campus não era fundo e Annanis já estava de pé apenas com a cabeça e uma das mãos para fora d'água. Na mão erguida, ele carregava o livro e com a outra empurrava a água em direção à margem oposta da qual tínhamos vindo. 

 Ele chegou na margem respirando pesado pelo esforço de atravessar o rio sem deixar que a correnteza o puxasse. Respirou fundo algumas vezes e começou a usar as linhas de mana azul dele para retirar a água das roupas e do corpo.

 Dazze e os amigos riam vitoriosos com a pegadinha. 

— Foi impressionante! Mal pude ver como as linhas se formaram, você pode fazer de novo? 

 A resposta de Annanis às gargalhadas delirantes dos três os fez se calarem mais rápido do que qualquer ataque que eu já tivesse visto.

 Ela olhou para Annanis com uma fúria arrebatadora e não disse mais nada, apenas se virou e saiu com os outros dois lacaios atrás dela. Eu corri até onde Annanis estava e perguntei-lhe: 

— Você está bem?

 Ele me deu aquele sorriso afetado. 

— Estou ótimo, ela é muito boa. — Eu sacudi a cabeça negando, desacreditado com o que ele tinha acabado de dizer. 

— Devemos ir até um dos mestres e reportar o que ela acabou de fazer. Você poderia ter se machucado seriamente, eu serei sua testemunha.

— Não precisa, Alanno, como eu disse, eu estou ótimo. Além do mais, vai ser a sua palavra contra a dela. Você sabe que eu não sou um aprendiz e não posso acusá-la de nada. 

 Eu olhei em volta e confirmei o que Annanis já tinha percebido, não havia um único aprendiz por perto que pudesse testemunhar o que aconteceu.

— Não importa — eu disse furioso e continuei. — Se for preciso, fazemos um teste da verdade. — Annanis me olhou confuso e eu expliquei: — Um teste da verdade, é um ritual que torna visível se alguém está mentindo.

 Ele colocou a mão no queixo e ficou pensando por um tempo, antes de responder. Eu fiquei me perguntando o que poderia ser tão complexo para que ele demorasse tanto para chegar a uma decisão.

— Ela está me ensinando bastante coisa, ainda não é a hora certa — ele, por fim, falou. Eu fiquei parado de boca aberta sem saber o que responder ao que ele tinha acabado de me dizer.

 O que ele poderia esperar para aprender de ataques covardes e brincadeiras de mau gosto, eu não tinha ideia. Eu não consegui convencê-lo a reportar o ocorrido e toda vez que eu tocava no assunto, ele rapidamente dava um jeito de desconversar e mudar de tópico.

 Se as minhas surpresas com Annanis tivessem parado por aí eu me daria por satisfeito, mas não. Alguns dias depois do ocorrido na ponte, quando deixávamos a biblioteca, após o término do meu turno, eu me surpreendo com Annanis usando as linhas de mana dele na minha direção. 

 Pelo tamanho da linha e pela delicadeza que ele as arremessava contra mim, eu sabia exatamente o que estava fazendo. Ainda assim, não consegui deixar de expressar minha súbita surpresa. 

— O que você está fazendo? — disse. Ele se assustou com a minha abrupta questão. 

— Me desculpe, Alanno, não pretendia fazer nada de mal — ele respondeu, parecendo arrependido.

— Onde você aprendeu a fazer isso? — perguntei, irritado. 

— Os outros aprendizes estavam lançando linhas parecidas contra mim; percebi que eles analisavam como elas refletiam em mim — respondeu-me, encabulado.

— Sim, isso serve para você medir o quanto de mana o mago ou o objeto tem armazenado — eu disse irritado, explicando da melhor forma que pude. 

— Dependendo do quanto de mana você tem armazenado, elas refletem de forma diferente, quanto mais mana, mais agudo é o ângulo de refração, pois o corpo já está cheio dela. Se tiver pouca mana, o ângulo de refração é mais obtuso.

— E como você sabe se ele pode armazenar muita ou pouca mana? — Como sempre, ele era perspicaz na hora de se atentar aos detalhes. Saber se um mago tinha as reservas cheias de mana ou não, era só metade da equação. O quanto de mana ele podia acumular, era a outra parte da questão.

 Fiquei encarando-o, decidindo se eu respondia ou não a seu questionamento. Ponderei se me traria algum problema esse tipo de informação. Os olhos dele brilhando de ansiedade pela resposta me fizeram decidir. E expliquei:

— Se o mago possui muita mana acumulada e suas reservas forem grandes, as linhas vão refletir bem antes de chegarem próximas ao corpo dele.

 Ele abriu aquele sorriso próprio dele e disse: 

— Entendo, é um processo difícil. Requer prática para percebermos as diferenças. — Eu respondi antes que ele pudesse formular muito mais longe os pensamentos:

— Nem pense em ficar testando isso em outros aprendizes. Não é nada cortês lançar suas linhas na direção de outro mago, sem o seu devido consentimento.

 Não fiquei nada satisfeito em vê-lo pensando exatamente isso e dando gargalhadas ao ver o quão sério eu falava sobre o assunto. 

— Prometo não testar isso em nenhum aprendiz. O que foi? Estou falando sério! — Meu olhar severo sabia que ele ainda estava maquinando alguma coisa e acrescentei. 

— Muito menos em algum dos mestres.

 Ele me olhou pasmo e falou: 

— Jamais faria qualquer coisa a respeito com algum dos mestres — ele garantiu e voltou a dar aquele sorriso afetado. 

 Ao vê-lo com todos aqueles aprendizes não tinha dúvidas de que ele já havia aperfeiçoado a técnica para analisar o potencial de mana de outros magos. Isso explicaria agora o porquê ele estava tão empolgado em caminhar pelo campus durante toda aquela semana, ao invés de ficar horas lendo na biblioteca como de costume. Ele devia ter testado cada candidato que passou por ele.

 Os novos alunos já tinham se enturmado muito rápido e conversavam uns com os outros, como se fossem amigos de longa data — eu duvidava que algum deles se conhecesse antes de hoje. 

 A comida que Teissa e Frazzo tinham preparado para a pequena confraternização entre amigos não era suficiente para dar conta de mais de duas dúzias de bocas a mais. Contudo já era esperado que novos alunos chegassem hoje e muita comida havia sido feita para atendê-los.

 A sopa que seria servida para os novos aprendizes não era nada mais que legumes e pedaços de carne. Diferente dos pedaços de linguiça e queijo com frutas em conserva que Teissa e Frazzo tinham preparado para a confraternização particular. 

 Os recursos que a Academia reservava para a cozinha dos bolsistas eram patéticos; era impressionante como os dois faziam de migalhas um banquete de sabor sem igual. Até as comidas mais simples que eles preparavam, superavam em sabor, os pratos mais elaborados no meu dormitório.

 As mesas do refeitório eram grandes placas de madeira e cabiam cinco pessoas sentadas de cada lado. As cadeiras eram pranchas de madeira e os novatos começaram a se sentar, espremendo e ocupando todo o espaço próximo à mesa, puxando mais mesas e formando uma bem maior, formada por três mesas menores. Eu me afastei para a ponta dela e fiquei ali.

 Annanis conversava com Garrand e mais dois rapazes em pé, distantes da mesa. Um deles era um dos novatos e o outro um dos amigos de Garrand. Eles riam, enquanto Annanis contava algo, fazendo gestos com as mãos e apontando severo, fazendo poses e imitando a postura de um mestre. De certo, ele estava contando sobre como foi a prova e como os mestres o trataram. 

 Um dos novatos estava sentado do meu lado e me cumprimentou; mal trocamos duas palavras e ele se sentiu à vontade o suficiente para atacar a comida à sua frente. Eu tinha trabalhado o dia todo na recepção dos aprendizes e estava faminto, mas vendo a voracidade com que os novos aprendizes atacavam a mesa, decidi que não entraria nessa batalha, comeria algo quando voltasse ao meu dormitório.

 O diminuto banquete, como era de se esperar, não ia durar muito, quando os últimos pratos começaram a ficar vazios vi que Teissa, que estava sentada à minha frente, trocou olhares com Frazzo, que estava do outro lado da mesa entretendo quatro outros novos aprendizes. 

 Teissa falou algo com a garota tímida de cabelos dourados trançados e amarrados atrás da cabeça, que estava sentada ao lado dela. Ela não tinha conseguido chegar em nenhuma das travessas perto dela — os garotos esfomeados atacavam as travessas em uma sucessão de golpes. 

 Os dois cozinheiros se retiraram, furtivamente para as cozinhas, e em pouco tempo gritaram da janela que dividia o refeitório da cozinha, avisando que a sopa seria servida e seria o prato principal da noite. Os novos aprendizes não fizeram quaisquer reclamações e logo começaram a formar uma fila para conseguir uma porção.

 Eu tinha ficado sozinho na mesa e foi nessa hora que Annanis bateu o olho em mim. Ele sorriu e acenou. Falou algo com Garrand e se virou, procurando alguém. Foi até a fila que os garotos tinham formado para pegar a porção de sopa e começou a conversar com a garota de cabelos dourados que estava no meio da fila.

 Ela estava incerta. Annanis apontava para a mesa na minha direção e insistia, argumentando algo e apontando para a fila. Por fim, ela concordou com ele e saiu da fila, os dois vieram andando em minha direção. 

 Eu não sabia se me levantava ou se permanecia sentado e em meio ao meu dilema, Annanis já tinha chegado. Ele indicou para que a garota se sentasse ao meu lado. 

— Esse é Alanno, em quem tanto falei, Molli. — Ela fez uma mesura constrangida. 

— Alanno, essa é Molli, ela é incrivelmente talentosa — apresentou-me à menina.

— Prazer, Molli! — Eu fiz uma mesura torta entre me levantar da cadeira e ficar sentado. Estava desconcertado pela situação, mas, pior ainda, foi quando Annanis insistiu que ela se sentasse ao meu lado.

 Ela sentou-se toda encolhida e Annanis, ao seu lado, deixando-a no meio de nós dois. Ele tinha dado bastante espaço para ela e eu tentei recuar o máximo que pude na cadeira, mas eu já estava na ponta e tudo que fiz foi me arredar uma polegada. 

— Alanno, você não vai acreditar no que ela me disse! Ela disse que os tritões afirmam terem sido a primeira raça criada pelos deuses. — Ela me olhou e deu um meio sorriso, acanhada, como se confirmasse o que Annanis tivesse dito. Pude ver de perto o rosto fino e repuxado com a pele sardenta típica, de quem trabalha muito tempo exposto ao sol. 

— Acredito que todas as raças afirmam terem sido as primeiras a serem criadas pelos deuses — eu disse. Molli olhava agora fixa para a fila de jovens que tinham ido pegar sua travessa de sopa. Restavam apenas uma meia dúzia na fila. 

 Annanis abriu a boca para contestar o que eu tinha dito, porém se deteve ao acompanhar o que Molli perseguia com os olhos. Ele sacudiu a cabeça como se espantasse as palavras presas na garganta e por fim falou: 

— Eu sou um idiota, vocês devem estar famintos! 

 Falar em comida despertou a atenção de Molli de volta para o que estava acontecendo ao lado dela. Ela olhou para Annanis e antes que eu ou ela pudesse argumentar algo, ele se levantou em um pulo do banco. 

— Fiquem aqui, vou pegar algo para vocês.

 Ele saiu a passos largos, sem olhar para trás. Eu fiquei de boca aberta sem saber o que dizer. Eu mal conhecia a garota e ela certamente estava incomodada de estar sentada ao meu lado; pensei em me desculpar e sair, mas antes que pudesse pôr em prática minhas desculpas, ela disse: 

— Ele é sempre assim?

 Eu ri, consternado. 

— Se por assim, você diz, imprevisível como uma tempestade. 

— Ao menos com uma tempestade sabemos que veio arrancar nossos telhados e afundar nossos barcos. — Ela me olhou, aflita, sacudindo a cabeça, recuperando-se do baque dos acontecimentos.

— Espere só, a capacidade dele de ser inusitado supera todas as expectativas — falei, com ar de experiência e ela deu uma gargalhada retumbante, nós rimos em harmonia e ela pareceu ficar mais relaxada. 

— Do que vocês dois estão rindo? — Annanis apareceu, do outro lado da mesa, equilibrando três travessas de sopa. Uma apoiada com o antebraço e as outras duas, uma em cada mão. Eu e Molli nos entreolhamos e caímos na gargalhada; ri até minha barriga doer e eu começar a lacrimejar de dor. Depois de um dia cheio, rir daquele jeito me fez relaxar todos os músculos; estava cansado, mas me sentia bem.

 Os novos aprendizes tinham se sentado, ocupando toda a mesa e pequenos grupos tinham se formado, conversando alto e animados. Nós três comíamos quietos e a comida era a única coisa que mantinha Annanis por perto em silêncio.

 Suas discussões filosóficas a respeito dos acontecimentos das antigas guerras, levavam-nos sempre a horas de suposições para as inúmeras contradições nos documentos e manuscritos que existiam na biblioteca. Ele fazia questão de enumerar e relatar cada trecho que não batia e eu não dava importância, ao porquê de isso ser tão importante para ele. 

 Foi Molli que rompeu o silêncio de nossa seção da mesa. 

— É sempre assim tão animada a recepção dos novos aprendizes? — Annanis parou, com a colher no meio do ar por um segundo; Molli olhava para ele e para mim. Annanis me encarou e voltou a comer, estava claro que era eu quem teria de responder à pergunta.

 Demorei um tempo a responder, pois as memórias da minha entrada na Academia tinham sido tão duramente enterradas no fundo da minha mente, que nesse momento, quando precisei delas, foi como relembrar algo distorcido.

 Minhas primeiras semanas na Academia foram horríveis. Eu não conhecia ninguém, ninguém veio me receber ou me esperava para comemorar meu sucesso. Nos primeiros meses, eu sofri com as diversas brincadeiras dos veteranos e nenhum dos outros aprendizes, que tinham passado comigo, tentou fazer qualquer tipo de amizade comigo.

 Tudo que estava acontecendo naquele dia era tão estranho; aprendizes veteranos recebendo os aprendizes mais novos com reciprocidade; uma refeição quente comungada para unir e não só para matar a fome.

— Não. Na verdade, eu nunca vi nada disso que está acontecendo aqui. Desde que entrei no campus, esta é a primeira vez. — Minhas palavras deviam ter soado confusas, pois Molli me olhava sem entender.

— Acolher é melhor que dividir — Annanis falou, e nós dois olhamos para ele, tentando entender o que queria dizer com aquelas palavras. Ele deu aquele sorriso afetado e não disse mais nada.

 Terminamos de comer e eu e Annanis repetimos a porção. Pouco tempo depois, Teissa e Frazzo se juntaram a nós para comer e conversamos sobre a comida e sobre os novos aprendizes, que trocavam conversas animadas. Um sentimento de amizade começou a se formar entre Teissa, Frazzo e eu. 

 Eles já não me tratavam mais com estranheza, como tinha acontecido nas primeiras noites em que eu encontrava com Annanis nos refeitórios dos bolsistas. Era certo que eles não esperavam que um sujeito como eu, que vivia nos dormitórios luxuosos, que os nobres e os abastados viviam, viesse dar as caras por aqui.

 A verdade era que eu mesmo demorei a entender o porquê de eu me sentir tão bem em meio a todos eles. Eles não ligavam para o que eu tinha ou qual era o meu status, eu era amigo de Annanis e isso bastava para eles.

 Com as barrigas cheias e a noite ficando cada vez mais chamativa, os novos aprendizes começaram a perguntar por um local para dormir e Bello apareceu no refeitório para receber os novatos. Ele pareceu bem surpreso de encontrar todos ali, mas não fez qualquer comentário. 

Eu também tive um dia cheio e resolvi me retirar. Despedi-me de todos e fiz questão de me despedir de Molli. 

— Teissa, cuide para que Annanis não perturbe muito a Molli, parece que ele achou alguém mais interessante que eu — eu disse, fazendo uma cara de ciúmes. 

— Não diga isso, Alanno! Você sabe que eu nunca vou te abandonar. — Annanis disse e todos na mesa riram, com exceção de Molli, que tentava esconder o rosto corado.